Ainda sentado Arlequim alcança um pequeno compartimento ao lado de sua mala. Sua mão desaparece dentro deste, ele o remexe até encontrar o que procura. Segundos depois está com um cigarro nos lábios. Ele traga e suspira, a fumaça logo carregada pelo vento. Já se perguntara se aquilo, o habito de fumar, possuía para ele um sentido dúbio: o acalmava... e o matava. “Talvez”, pensou, sentindo alguma calma o tomar quando soltou a costumeira fumaça pela segunda vez.
Procurou ter a mente fria. Mantê-la calculista, ainda que ela relutasse. Se examinou e, como há pouco, constatara que estava perdido, servindo a duas vozes. Não sabia dizer se eram as vozes do passado e do presente, do passado e do futuro. Talvez não se tratasse de nenhuma das possibilidades. Talvez se tratasse de quem ele um dia fora e quem ele seria se fosse conivente com os padrões que o cercavam. Talvez. Ele sabia, porém, que haviam duas vozes lhe falando à consciência, lhe sussurrando aos ouvidos.
Talvez... tudo soava como um grande talvez. No entanto ele estava pronto. Ele ouvira alguém. Ou ninguém. Uma das vozes, no final, lhe será útil e verdadeira. Percebeu-se, neste instante, como sendo servo de um fantasma – de um espirito. Dependente dessa forma ou dessa deformidade. Alguém que, de qualquer forma, ele esperava que estivesse lá.
Havia a dor, mas ele buscava sobrepujá-la, estar acima desta, não permitindo que lhe ditasse as direções, não lhe ditasse também suas emoções. Já sofrera em demasia por isso.
Porém, ao mesmo tempo, para chegar a algum lugar – a algum lugar diferente – ele deveria correr o risco. Sem riscos, era bem sabido, não se chega a lugar algum. Não obstante, manter-se estagnado também se trata de um risco.
Mesmo, então, para batalhas, lutas que exigissem muito dele, ele estaria pronto para elas.
“Saque sua faca”, uma das vozes, no entanto, pareceu lhe dizer de forma desafiadora. “Fira sua alma e esteja preparado para ouvir seus gritos, beber do sangue a verter . Por fim, aproveite o momento!”
No entanto, ainda que essa decisão lhe tivesse acometido, seus olhos o obrigaram a notar algo: ele estava sozinho. Completamente sozinho. Estes mesmos olhos pareceram feridos por isso. A persistência que foi a bandagem que ele utilizou sobre estes olhos a fim de que ele pudesse ao menos prosseguir.
Arlequim se lembrou de um de seus momentos no velho trailer que fora levado pelo circo e seria dado a outra pessoa. Lembrou-se de uma vez em que, antes de maquiar-se, fitou o espelho. É óbvio que ele vê a si mesmo neste. Entretanto, fora doloroso.
“Você não passa de uma prostituta para essa vida, não é?” Não demorou para que aquilo que lhe doesse. Ele se lembrava de ter varrido toda a maquiagem e apetrechos ligadas a essa para o chão – o mesmo chão no qual ele caiu ajoelhado e lágrimas lhe desciam pelo rosto destruindo o trabalho, ainda que pouco, que ele havia feito.
Ainda que vagarosamente, ele começava a entender o que acontecia. O que a vida era.
Ele recordou de ter se levantado. Fitara o espelho outra vez. Fitara a si mesmo outra vez. Era ele e ninguém saberia disso mais do que ele. Ainda que estivesse vestido com suas roupas para o espetáculo da noite que se avizinhava ele era capaz de se enxergar perfeitamente. Nu. Suas vergonhas, suas falhas, seus medos e dores, assim como suas virtudes. Estas últimas, para ele, eram quase questionáveis. Se apenas ele via sua honestidade, sua generosidade e sua fraternidade como virtudes, como saber se realmente o eram? Como ele definiria isso? Há um padrão? Algo que mostre a direção...?
Ele se desvencilhara desses pensamentos. Não precisava deles agora. Intentava se focar naquela noite e nela apenas...
... naquela noite onde ele revidara as vozes.
— Me mostre sua carne — ele havia dito para a figura no espelho. Era ele, mas também não era. Era ele, mas também eram aquelas vozes... o estranho fantasma ao qual ele inconscientemente, ou às vezes conscientemente, servia. — Corte-a. Quanto a mim? Sim, violente essa alma, beba do néctar que ela verter e a fertilize. No entanto, saiba de algo: não posso me livrar de você... mas você também não pode se livrar de mim! — Arlequim baixou os olhos para as próprias mãos. Eram realmente dele? Voltou os olhos para o espelho e o olhar que recebia, que lançava, era firme. — Como você grita em minha mente eu gritarei dentro da sua. Vou estraçalhar esse seu maldito crânio de dentro para fora. Sua dor, seu ódio... eu vou senti-los. Suas feridas... eu as abrirei e farei com que sangrem novamente!
Eram promessas! Ou não eram? A quem? A si ou àquele que pensava não ser ele, ou quem desejava que não fosse ele...?
Ele continuou fitando o espelho. Fitando as formas da pessoa que lá enxergava. Era ele, e sentia que também não o era. Apesar das vozes existirem, elas eram apenas ele. Apenas ele, pois estava sozinho. Completamente sozinho. A não ser por si mesmo. Pois podia dizer ao reflexo que se fosse, que o deixasse em paz, mas isto não aconteceria. Qualquer pedido receberia um não, ainda que o tempo tivesse passado e o próprio Arlequim não tivesse cumprido com as ameaças que fizera.
A única verdade, até então, é que fora ele seu maior enganador. Fora ele próprio o Judas que o traíra. Ele se punira e acabou sangrando pelas escolhas que fez contra si mesmo. Contra si mesmo. No entanto, dentre as maiores verdades já ditas neste mundo uma que merece ser sempre lembrada é que cada um é o pior inimigo de si mesmo. No fim, talvez, todos queiram apenas se punir pelo sofrimento que infligiram a si próprios.
Seria um massacre sangrento e hediondo se as coisas fossem simples assim. Não são, todavia. Embora muitos queiram. Embora o próprio Arlequim quisesse isso em momentos.
Ali, mesmo sozinho, como naquela lembrança ele se levantou. O cigarro, qual ele mal fumara, acabara se consumindo e as cinzas precisavam apenas do costumeiro “peteleco” para caírem. Precisava continuar.
Logo nevaria.
Felipe R.R. Porto
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