quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Satura - Capítulo 6: Chama Ao Vento

Começara a realmente nevar. A luz em alguns dos postes piscava.

Pierrot ainda ouvia o estranho silêncio. Tão incomodo e terrível silêncio. Quis saber até quando haveria de se prolongar.

Ele havia parado um tanto longe do hotel, de frente a uma loja com amplas vitrines, mas a escuridão no interior do estabelecimento fazia com que a grande peça de vidro se tornasse um imenso espelho. E ali estava. Parado... naquele grotesco silencio, mas inconformado com ele.

Uma voz solitária no vasto espaço silencioso.

Uma vela na vasta escuridão. Lembrou-se, fatalmente, da vela vista antes de deixarem a igreja instantes atrás – ele, inclusive, se perguntou a quanto tempo estivera parado ali, sendo castigado pelo clima em vias de se intensificar.

O ministro, sua mente o fez continuar a rememorar, havia fechado as portas do templo. A vela, assim, estaria a salvo. Não haveria mais esforço para resistir ao soprar do vento, não teria mais de lutar para que seu calor e luminosidade se mantivessem.

Pierrot não estava na mesma situação. Havia o vento e ele era a vela exposta. Kális, em sua mente, em seu coração, por tanto tempo sua luz pequena e preciosa também estava lá. Também uma vela, mas ela se apagava. A vela dela não suportaria aqueles ventos. Ela se apagaria...

O jovem decide se mover, mas quando o faz apenas se vê na vitrine. O estranho espelho formado pelo invisível e pela escuridão visível. Vê seu rosto jovem, mas cansado. Jovem, mas preocupado. Ele força um sorriso, uma força que o consome ligeiramente. Ele suspira fartamente, seu hálito quente embaçando a vitrine, onde seu rosto se torna apenas um borrão pouco a pouco desaparecendo à medida que ele dá passos atrás, virando-se, não tendo intenção de encarar-se outra vez.

Lá está o hotel. Ali estava Pierrot. Estático. Silencioso. Mudo. Uma figura no inverno e então há um chamado...

Por um momento ele se vê desperto, olhando à sua volta em busca da origem do chamado, mas seus olhos não encontram nada ainda que esperassem encontrar alguém, mas não houve sucesso. Ele esperou e esperou, ainda procurando, mas logo houve o silêncio novamente e, então, a solidão. Havia a esperança, mas há a sobriedade e, por fim, a renuncia a qualquer coisa que tivesse ouvido. Estava sozinho, tragado para uma funesta monotonia estática.

Não houve um segundo chamado. O vento, no entanto, soprou mais forte, um silvar choroso que perdeu-se penumbra adentro. Pierrot, que havia recuado diante da imagem do espelho agora se vira novamente diante desta, impelido pela reação mediante o vento repentino, obrigando-se a procurar abrigo.

Outra vez ele respira diante de si mesmo, sua imagem sendo outra vez embaçada. Minutos se passaram quando ele percebeu o vento sossegar, embora não cessar, e uma neblina chegar sorrateira pelas ruas; um fantasma translucido e rastejante. Mais um dentre os tantos fantasmas vistos naquela noite salpicada de cadentes flocos alvos, os quais se empilhariam a fim de erigir diversos monumentos disformes, anunciando e firmando o reinado do inverno pelos próximos meses.

Um sobressalto lhe toma quando ele vê, por cima do ombro, no reflexo, uma silhueta na neblina. Ele se volta, girando rapidamente nos calcanhares, a fim de escrutar a cortina esbranquiçada diante dele. E não vê nada. Um arrepio lhe percorre o corpo, tão vivido como se a fria brisa lhe tocasse o corpo nu. Não pôde deixar de sentir que alguém o observava. Mas talvez estivesse errado. Talvez fosse um fantasma. Outro. Seria apenas mais um visto dentro da já fantasmagórica neblina.

Havia nele o crescente anseio de que a tempestade realmente viesse avassaladora. Mas ela, por fim, não viera. Não ainda. Os ventos sopraram insistentes, mas apenas para trazer a neblina... e isso foi tudo.

Ali, havia apenas ele cercado de neve. Ele, uma vela que poderia ter sua chama, seu calor e brilho tomados pela neve que cobria tudo ao redor. Sua chama, em seu coração outrora tão aquecido, ameaçava falhar... Fraca, tão fraca.

Aqui, então, ela expira.

Aqui, então, o corpo cansado falha, se entregando ao frio. Derrotado pelo inverno, pelo silêncio. Pelo medo e pela solidão que tanto o açoitaram, o castigaram até então.

"A sátira perfeita", ele pensou antes de colapsar na brancura da paisagem.

Os olhos de Pierrot se abrem. Sua realidade, ou seu sonho acordado, não havia chego ao fim ao que parecia e seu corpo ainda desejava a vida – seu desejo de continuar viviam. Ainda que mais em sua carne e ossos que em sua alma.

Imóvel ele permanece sobre seu leito de gelo. Sentia as juntas começarem a doer, mas não se movia.

Era como se ainda estivesse esperando algo...

... talvez esperando o sol nascer.

Mas não há um sol, pois ainda é noite, embora ele não soubesse que horas eram. Contudo, há sim algo que brilha, reluz diante de seus olhos exaustos. Mãos tocam as suas. Mãos quentes tocam a suas tão frias e ele vê um rosto diante de si.

Não era o sol, mas irradiava.

A mulher sorriu, provavelmente diante da reação de alguém que talvez pudesse estar morto. Ela sorriu. Não um sorriso como o de Kális, mas que ainda assim pareceu cavar a carne de Pierrot como havia anos não acontecia... como ele achava que jamais fosse acontecer. Ou não tão logo.

Se a vela havia se apagado... agora tornava a estar acesa. Ou se esforçava para estar.

— Me chamo Elodia — disse ela sorrindo e Pierrot simplesmente se viu desejando que aquele sorriso, como se fosse divino, durasse para todo o sempre.

Que jamais se fosse.

Felipe R.R. Porto

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Satura - Capitulo 5: O Silêncio

Deixara a igreja pouco depois de Kális ter retornado. Uma vela bruxuleava ao vento quando cruzavam a porta. A mesma parecia, em momentos, que se apagaria, mas persistia.

A praça já se esvaziava e mesmo as ruas quais a acessavam tinham poucas pessoas. Pierrot não tinha um relógio consigo, mas temeu que ele e Kális houvessem demorado mais do que pensavam.

— Agora é hora de nos despedirmos — ela disse a ele quando saltaram do último degrau da escadaria, parando um de frente para o outro. Pierrot pode ver a porta da igreja se fechando. Aquilo lhe ofereceu estranho alívio, pois a forma como a vela quase se apagava o havia incomodado. Não queria que ela se apagasse. — Espero não demorar tanto para voltar a te ver.

Ele sorriu.

Ela sorriu de volta, um sorriso deslumbrante, qual ele sabia ser incapaz, ao menos no momento, de devolver a altura. Por sorte ela sabia disso.

— Também espero por isso.

— Cuide do “Pierrot” no interior das suas Galerias...

— “Cuidar” não é bem o que eu gostaria de fazer com ele.

— Mas pode ser o que precisa fazer — ela disse, se aproximando e o abraçando. Ele sentiu seu corpo se arrepiando e não foi de alegria. Dentro de si aquilo pareceu... doer? Ainda assim ele a envolveu em retribuição.

Aquilo fora o certo a se fazer, pois sentiu o mal estar esvair-se aos poucos. Não era sobre não gostar dela, ou sobre evita-la. Era sobre evitar o ser humano. Ele e ele apenas sabia o quanto evitaria a si mesmo se fosse possível fazê-lo. Sim, havia formas de inibir desejos, impulsos ou pensamentos, mas não era saudável. Poderia apenas prejudicar-se ainda mais.

— Se cuide também — disse ele. — Cuidado com seu coração. Suas perguntas lá dentro não me soaram apenas como perguntas aleatórias.

Eles se afastaram, seus olhares se cruzando. O dela estava levemente marejado. Pierrot se aproximou dela e segurou seu rosto – pálido rosto – entre suas mãos, puxando-o leve e carinhosamente para perto de si. De forma leve e carinhosa foi que ele lhe beijou a fria testa. Demoradamente.

Se afastaram outra vez.

— Ouvi uma vez que as pessoas frias tem os melhores carinhos — ela disse.

— Me considera frio?

Ela deu de ombros, ainda chorosa.

— Você não é “quente” como a maioria.

— Isto é um problema — lamentou ele, mas em seguida notou que ela balançava a cabeça.

— Não — ela disse. — Em você não.

Assim, sendo estas suas últimas palavras, ela começou a se afastar. Longe o bastante ela se virou, lhe dando as costas enquanto seguia para um grupo de pessoas. Sua família. Pierrot não os vira ali.

Ela se fora e, por um momento, ele se viu sentindo falta de que ela o tivesse tomado pela mão e o levasse consigo, como fizera outras vezes naquela noite.

Todos se foram e ele estava, outra vez, sozinho na praça. Apenas o vento lamentava, falando de suas tristezas às arvores que choravam emitindo o som das folhagens. Não havia mais canto na igreja.

Silêncio. Havia outros sons, mas, repentinamente, tudo pareceu silêncio para o jovem.

Ele não demorou em deixar a praça, qual agora usava um manto mais espeço de neve, o fazendo repreender-se por não ter notado o quanto a esta havia coberto da paisagem desde cerca de uma ou duas horas. Estivera realmente tão distraído assim? O manto cobria os telhados ao redor e as ruas viam-se alvas a não ser por onde veículos haviam passado durante aquela noite. Pierrot parou, fitou o céu por alguns segundos e recomeçou sua caminhada, refazendo o caminho que o trouxera até ali. Acima, contrastando fortemente com o branco abaixo, o céu era uma placa negra. Uma nevasca viria naquela noite e não seria fraca.

Passos rápidos logo levaram Pierrot para a rua do hotel onde se hospedara, ainda que tivesse ainda cerca de quinhentos metros a prosseguir até alcançar o mesmo.

Um vento frio soprou, fazendo com que arrepiasse. Cerrou os dentes a fim de que estes não começassem a bater diante da exposição à baixa temperatura. O arrepio o fez lembrar-se do último que lhe acometera, quando fora abraçado por Kális instantes atrás. Ele havia se repreendido quanto à sensação, mas a entendia. A entendia perfeitamente assim como entendia o frio que lhe almejava congelar o viscoso liquido quente que lhe fluía pelas veias. Involuntariamente havia cultivado dentro de si um sentimento de repulsa quanto aos seres humanos. Não por que não amasse as pessoas ou tivesse asco destas, mas por elas não se amarem mais umas às outras e tivessem nojo uma das outras...

...e isto se via cada vez mais. Um requintado ódio que mais e mais fluía pelos corações da humanidade. Uma doença que se espalhava livremente sem algum tipo de fronteira ou barreira, sem limites que a impedissem de prosseguir com o contágio por toda a linhagem – nobre linhagem – dos homens. A igualdade permanece sendo igualdade, mas há uma estranha divisão que separa raças na mesma intensidade em que sexos se diferem.

— Ah — lamentou Pierrot audivelmente, sua voz unindo-se ao frio lamuriar do vento —, repulsa que se revela mais e mais a este mundo...

Era a verdade. Pessoa nenhuma viu. Pessoa nenhuma ouviu. Logo ninguém falará a respeito. Há sangue pelas ruas, mas nada aconteceu.

Ninguém sabe de nada.

O que estava acontecendo? Ouvia-se com frequência do quão evoluído e racional era o ser humano em detrimento das demais formas de vida animadas. Pierrot tinha dúvidas sobre o que era ser racional para a maioria das pessoas. Ele não precisava pensar muito para afirmar, com certeza, que dentro da igreja na qual estivera há pouco haviam pessoas que mesmo tendo unido as mãos em oração diante de Deus não hesitariam em avidamente matar pouco depois. As mesmas mãos que se elevavam suplicantes em orações em favor da paz seriam as primeiras a acorrentar e fazer prisioneiros. As mesmas bocas que se abriam e clamavam por piedade seriam as primeiras a falar de culpa, as primeiras a julgar – não mostrando a misericórdia que tanto buscavam paras si mesmas.

Há quem vá falhar e morrer, assim como há quem vai viver. Há olhos que verão a estas coisas. No entanto, há olhos que haverão de apenas se fechar antes elas.

E o sangue continuará escorrendo, mais e mais. Não há quem queira interromper a torrente carmesim lhe persistente flui. Clamando pelas ruas assim como o rubro sangue do precioso Abel clamou a Deus. A diferença, contudo, reside no fato de que ninguém sabe de nada. Ninguém ouviu e, assim sendo, ninguém falará.

O que persiste é o silêncio.

                            O terrível e cada vez mais ensurdecedor silêncio.

Felipe R.R. Porto