Começara a realmente nevar. A luz em alguns dos postes piscava.
Pierrot ainda ouvia o estranho silêncio. Tão incomodo e terrível silêncio. Quis saber até quando haveria de se prolongar.
Ele havia parado um tanto longe do hotel, de frente a uma loja com amplas vitrines, mas a escuridão no interior do estabelecimento fazia com que a grande peça de vidro se tornasse um imenso espelho. E ali estava. Parado... naquele grotesco silencio, mas inconformado com ele.
Uma voz solitária no vasto espaço silencioso.
Uma vela na vasta escuridão. Lembrou-se, fatalmente, da vela vista antes de deixarem a igreja instantes atrás – ele, inclusive, se perguntou a quanto tempo estivera parado ali, sendo castigado pelo clima em vias de se intensificar.
O ministro, sua mente o fez continuar a rememorar, havia fechado as portas do templo. A vela, assim, estaria a salvo. Não haveria mais esforço para resistir ao soprar do vento, não teria mais de lutar para que seu calor e luminosidade se mantivessem.
Pierrot não estava na mesma situação. Havia o vento e ele era a vela exposta. Kális, em sua mente, em seu coração, por tanto tempo sua luz pequena e preciosa também estava lá. Também uma vela, mas ela se apagava. A vela dela não suportaria aqueles ventos. Ela se apagaria...
O jovem decide se mover, mas quando o faz apenas se vê na vitrine. O estranho espelho formado pelo invisível e pela escuridão visível. Vê seu rosto jovem, mas cansado. Jovem, mas preocupado. Ele força um sorriso, uma força que o consome ligeiramente. Ele suspira fartamente, seu hálito quente embaçando a vitrine, onde seu rosto se torna apenas um borrão pouco a pouco desaparecendo à medida que ele dá passos atrás, virando-se, não tendo intenção de encarar-se outra vez.
Lá está o hotel. Ali estava Pierrot. Estático. Silencioso. Mudo. Uma figura no inverno e então há um chamado...
Por um momento ele se vê desperto, olhando à sua volta em busca da origem do chamado, mas seus olhos não encontram nada ainda que esperassem encontrar alguém, mas não houve sucesso. Ele esperou e esperou, ainda procurando, mas logo houve o silêncio novamente e, então, a solidão. Havia a esperança, mas há a sobriedade e, por fim, a renuncia a qualquer coisa que tivesse ouvido. Estava sozinho, tragado para uma funesta monotonia estática.
Não houve um segundo chamado. O vento, no entanto, soprou mais forte, um silvar choroso que perdeu-se penumbra adentro. Pierrot, que havia recuado diante da imagem do espelho agora se vira novamente diante desta, impelido pela reação mediante o vento repentino, obrigando-se a procurar abrigo.
Outra vez ele respira diante de si mesmo, sua imagem sendo outra vez embaçada. Minutos se passaram quando ele percebeu o vento sossegar, embora não cessar, e uma neblina chegar sorrateira pelas ruas; um fantasma translucido e rastejante. Mais um dentre os tantos fantasmas vistos naquela noite salpicada de cadentes flocos alvos, os quais se empilhariam a fim de erigir diversos monumentos disformes, anunciando e firmando o reinado do inverno pelos próximos meses.
Um sobressalto lhe toma quando ele vê, por cima do ombro, no reflexo, uma silhueta na neblina. Ele se volta, girando rapidamente nos calcanhares, a fim de escrutar a cortina esbranquiçada diante dele. E não vê nada. Um arrepio lhe percorre o corpo, tão vivido como se a fria brisa lhe tocasse o corpo nu. Não pôde deixar de sentir que alguém o observava. Mas talvez estivesse errado. Talvez fosse um fantasma. Outro. Seria apenas mais um visto dentro da já fantasmagórica neblina.
Havia nele o crescente anseio de que a tempestade realmente viesse avassaladora. Mas ela, por fim, não viera. Não ainda. Os ventos sopraram insistentes, mas apenas para trazer a neblina... e isso foi tudo.
Ali, havia apenas ele cercado de neve. Ele, uma vela que poderia ter sua chama, seu calor e brilho tomados pela neve que cobria tudo ao redor. Sua chama, em seu coração outrora tão aquecido, ameaçava falhar... Fraca, tão fraca.
Aqui, então, ela expira.
Aqui, então, o corpo cansado falha, se entregando ao frio. Derrotado pelo inverno, pelo silêncio. Pelo medo e pela solidão que tanto o açoitaram, o castigaram até então.
"A sátira perfeita", ele pensou antes de colapsar na brancura da paisagem.
Os olhos de Pierrot se abrem. Sua realidade, ou seu sonho acordado, não havia chego ao fim ao que parecia e seu corpo ainda desejava a vida – seu desejo de continuar viviam. Ainda que mais em sua carne e ossos que em sua alma.
Imóvel ele permanece sobre seu leito de gelo. Sentia as juntas começarem a doer, mas não se movia.
Era como se ainda estivesse esperando algo...
... talvez esperando o sol nascer.
Mas não há um sol, pois ainda é noite, embora ele não soubesse que horas eram. Contudo, há sim algo que brilha, reluz diante de seus olhos exaustos. Mãos tocam as suas. Mãos quentes tocam a suas tão frias e ele vê um rosto diante de si.
Não era o sol, mas irradiava.
A mulher sorriu, provavelmente diante da reação de alguém que talvez pudesse estar morto. Ela sorriu. Não um sorriso como o de Kális, mas que ainda assim pareceu cavar a carne de Pierrot como havia anos não acontecia... como ele achava que jamais fosse acontecer. Ou não tão logo.
Se a vela havia se apagado... agora tornava a estar acesa. Ou se esforçava para estar.
— Me chamo Elodia — disse ela sorrindo e Pierrot simplesmente se viu desejando que aquele sorriso, como se fosse divino, durasse para todo o sempre.
Que jamais se fosse.
Felipe R.R. Porto
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