domingo, 17 de março de 2024

Inferno - Capítulo 4: Olhos Cegos não podem ver


— Você não passou mal simplesmente, não é? — A voz de Elodia quebrou o silêncio que havia se instaurado desde que entraram no carro. Já estavam na rodovia há pouco mais de quinze minutos.

Pierrot apenas lhe lançou um olhar, logo o desviando, voltando a estudar a paisagem branca e cinza daqueles dias através do vidro ao seu lado. Desde aquela manhã Inferno, parte da atemporal Divina Comédia de Dante, tomava seus pensamentos. Tornara-se uma espécie de lente pela qual sua mente insistia em enxergar tudo.

Não precisava respondê-la. Ela mal o conhecia e ele poderia dizer que a conhecia muito menos. Ele, ao fim, queria apenas deixar o passado para trás...

No entanto, ela fora a responsável por ele ter essa oportunidade. Talvez ninguém pudesse ter feito por ele o que ela havia feito. Ele não tinha a obrigação de respondê-la, mas devia gentileza. E ele não precisava lhe dar os detalhes. Aqueles olhos dela pareciam ver mais do que aparentava.

— Há questões que nos perturbam a alma — ele disse, ainda olhando para fora —, e há algo que nos perturba tanto a alma que nossa carne não consegue se manter incólume.

— Realmente — ela disse, ainda fitando a estrada, concentrada no que fazia enquanto conduzia o veículo por uma curva levemente sinuosa onde arvores em dias anteriores estariam verdejantes. Não naqueles dias, pois agora eram apenas parte da paisagem. Pouco do seu verde estando exposto e, estando um dia escuro, mesmo esse verde pendia para o tom musgo.

Logo tudo estaria ainda mais sombrio, mesmo tenebroso, com a chegada da noite.

— Está mesmo evidente a ponto de você saber o que houve? — Pierrot acabou por perguntar.

— Aos meus olhos sim.

— Talvez eu deva concluir que seus olhos não são comuns...

— Talvez...

Pierrot voltou o olhar para ela. Encontrou-a olhando para ele. Ela deveria ser poucos anos mais velha do que, mas havia algo naqueles olhos e no modo como ela sorriu em seguida, algo que parecia dizer que ela vivera em seus vinte e tantos anos coisas que alguns viveriam apenas mais tarde na vida.

Pela primeira vez Pierrot se vira afeiçoado à mulher. Antes, ele supunha, fora mera atração física. Agora ele se compadecia dela quase ao ponto de se culpar pela desconfiança quanto ao fato de não conhecê-la.

Um flash lhe trespassou a mente, fazendo com que se recordasse, então, que não fora naquele dia que ouvira o nome da mulher ao seu lado pela primeira vez. Também não havia sido a primeira vez que vira seu rosto.

Ela, naquela noite fria, realmente esteve lá. Naquela noite tão fria. Ele vira seu rosto e também ouvira, pela primeira vez, o seu nome.

Elodia.

— Já viveu algo parecido? — Pierrot perguntou.

Ela apenas assentiu.

— Lamento.

— Não lamente muito — ela disse, uma torção nos lábios, um sorriso sarcástico.

— Devo lamentar pela metade?

— Lamente com controle na intensidade, eu diria.

— Como se eu devesse sentir alguma alegria pelo mal que te aconteceu?

— Exatamente... — ela começou a falar enquanto acionava o limpador do para-brisa — ... isso. E pelo que vejo isso é algo que você não costuma fazer.

Era uma verdade, mas a forma como ela falava era como se ele estivesse errado. Errado em querer deixar o passado e as dores para trás.

— Nunca deixe toda a dor para trás, Pierrot — ela disse, causando nele um sobressalto, o fazendo temer ter pensado alto. Porém, não o havia feito. — Ela tem sua importância.

— Não seria mais simples se ela, a dor, não existisse?

— Seria, mas ela existe. Sempre existirá não importa aonde você vá.

Elodia suspirou, não como por impaciência, mas apenas alguma forma de cansaço.

— A dor fará com que se lembre em que lugares pode ou não pisar — ela disse em seguida. — Somos, todos nós, livros a serem escritos. Conheci uma vez uma pessoa que tinha um caderno... um diário, onde escrevia o que sentia. À lápis. Ela, ao concluir o texto ou pelo menos tendo posto ali o que era necessário, apagava. Sei que cada um de nós tem suas formas de lidar com a vida, mas não acho que apagar algo dela será eficiente. Você não será um bom conselheiro se escolher deixar tudo no passado – você não me parece uma pessoa que deixará os outros sofrerem gratuitamente, Pierrot. Há pessoas que vão se machucar por ser inevitável, pois nunca fizeram aquele caminho, mas você poderá avisá-las. É comum que aprendamos com nossos erros, mas há um pouco de sabedoria, você há de concordar, em ver outros caindo e não querer cometer o mesmo engano...

— Acredito que funcione para você.

— E digamos que neste momento estou tentando a mencionada parte dos conselhos.

Pierrot não conseguiu evitar sorrir, a cidade se tornando visível. Não mais os prédios altos perfurando o céu, apenas um ou outro sobrado e menos ainda edifícios maiores.

— O medo é um mal necessário, eu diria — Elodia prosseguiu. — Porém, há medos positivos e negativos. O medo negativo vai te atrapalhar no que é importante, te impedindo de progredir. Por medo você poderia, por exemplo, fazer o que a pessoa que mencionei fazia. Ela escrevia e apagava, restando apenas páginas com sombras de rabiscos, a mente talvez envenenada por crenças impossíveis enquanto outras páginas deveriam ser preenchidas. Ela não vê, mas está presa. Não está vivendo uma historia, mas está compondo uma espécie de fábula perfeita e eterna – totalmente oposta a este mundo. Mundo este que soa cada dia mais estéril; a poeira sendo tudo o que há na superfície, mas os corações não estão muito diferentes. Não há poeira, mas há frieza.

Ela fez uma pausa, a sombra noturna agora não mais sendo o suficiente para cobrir as luzes da pequena cidade cada vez mais próxima.

— Temo não conseguir enxergar as coisas desta maneira, Elodia — ele disse simplesmente, o peito outra vez acalorada diante da mera menção do nome.

Ela meneou a cabeça.

— Talvez apenas não queira — ela disse enquanto finalmente adentravam a cidade sem reduzir muito a velocidade, os pequenos edifícios, com dois ou pouco mais andares, passando ao lado feito borrões enquanto a luz, entre magenta e laranja, dos postes quase os tingia. — Olhos cegos não podem ver e não se discute isto. Esta é a realidade deles, qual não existe para nós, assim como a nossa não existe para eles. Você certamente é familiarizado com o dito “o pior cego é aquele que não quer ver”. Dentre todos os medos acho que o maior medo que devemos ter é de que estejamos enganando a nós mesmos e este seria um medo positivo, creio. Você pode enxergar as coisas assim se quiser, mas não se prenda ao passado – seja ele de risos ou de lágrimas. Um passado cheio de risos te fará sentir medo de um futuro onde eles possam ser ausentes se foram tudo o que teve. Um passado cheio de dor pode te fazer crer que pode não haver esperança para um futuro diferente. Creio que não há como escolher apenas um. Risos e Lágrimas estão mais unidos do que pensamos, são feito os trilhos do trem que correm lado a lado. Nós estamos no trem. Creio que o modo como lidamos com o medo seria o que une ou separa risos e lágrimas. Talvez nos disfarcemos, ou talvez apenas escrevamos e confiantes prosseguimos dando apenas tempo ao tempo, crendo que ele resolverá tudo. Porém, o tempo não cura, ou salva, tudo ou todos. Dar tempo a uma ferida pode significar cura, mas se ela não receber nenhuma atenção pode significar morte.

A menção de Elodia sobre o ver e o não ver, sobre o ser cego, impeliu novamente Pierrot para Alighieri, o fazendo rememorar o momento em que Virgílio e o Poeta, tendo descido já ao Sétimo Círculo, onde fluiria o pavoroso Rio Flegetonte. Este seria o destino dos violentos, fosse contra seu próximo, a si mesmos, contra Deus, contra a Arte ou a Natureza. Cruzando ambos a Floresta dos Suicidas ouviram sobre Pietro della Vigna. O homem, um influente ministro italiano, fora preso e seus olhos lhe foram tirados a mando do Imperador Frederico II. Pietro se suicidaria mais tarde.

Elodia falava sobre o enganar-se. Estaria sendo Pierrot, ao mesmo tempo, della Vigna e o Imperador? Era ele quem estava impedindo a si mesmo de enxergar?

— Não se engane. Não minta para si mesmo — ela terminou, como se sondando suas introspecções. O carro diminuiu a velocidade até finalmente parar. Pierrot não notara, mas estava novamente diante do hotel.

Ele deixou o carro pouco depois dela, talvez um tanto absorto depois de tudo o que ouvira dela. Não foram apenas conselhos. Se os meios justificam os fins os fins podem denunciar os meios. Pierrot poderia simplesmente ler a historia ao contrário e ver que aquelas palavras foram ditas a ela um dia ou ela, através de dura experiência, aprendeu o que tentava lhe ensinar.

Ela passou depressa pelas portas do hotel, escapando logo de seu campo de visão. Poderia estar errado, mas chegou a pensar que a pressa repentina da mulher se devia ao fato de não querer encará-lo. Não por aquilo que ela veria, mas por aquilo que ele veria desta vez. O sentimento de afeição por ela voltou e Pierrot sentiu a empatia lhe inundar o peito e os olhos, mas ele conteve as últimas. Por um instante ele pensou se ela merecia sua confiança; mesmo fazendo parte daquele mundo que ela mesma definira como estéril e poeirento.

Um mundo repleto de lágrimas e poeira. Não há, então, de durar muito, sua mente concluiu antes de ele seguir os passos de Elodia.

Ele tornou a se repreender. Não era este o pensamento que ele gostaria de cultivar no momento. Porém, ele estava lá tentando alcança-lo. Sussurrava. Sem coração para sangrar ou coração para bater. Ele não sofreria pelas decisões de Pierrot, então. No entanto, o fato de tal pensamento existir não significava que deveria ser ignorado. Era necessário estar atento ou o jovem palhaço acabaria preso em suas correntes.

A porta do hotel se abriu. Elodia apareceu. Realmente havia algo de diferente em seu semblante.

— Você não está pensando em congelar aí fora outra vez, está?

Ele se apressou. Teve medo de entrar no estabelecimento e receber olhares inquisidores, mas o salão estava vazio. Apenas duas ou três mesas estavam ocupadas. Pierrot, conduzido por Elodia, logo subiu para o quarto onde se hospedara.

Acendeu a luz e foi capaz de esboçar um sorriso tímido ao ver a caixa de seu violino sobre a cama.

Elodia percebeu isto, tendo entrado também e se colocado ao seu lado.

— Como retribuição por minha ajuda quero que toque para mim — ela exigiu, o levemente ácido humor inicial dela retornando. Pierrot sentiu que gostaria de conviver com aquilo.

— Sua ajuda, então, exige retribuição?

— Não, mas você vai tocar se eu disser que é? Se sim eu te deixo pensar que foi por mero orgulho e vontade de me gabar diante dos outros pelo bem que faço.

Ela foi até as portas duplas que dariam acesso à varanda. Estavam fechadas, claro. Havia neve lá fora. Mesmo assim ela olhou para além do vidro embaçado por um tempo. A noite já caíra completamente.

— Mesmo frente às maiores tragédias a dor é apenas momentânea — ela disse sem se virar. — Se as paredes desabam elas podem ser reerguidas, só seja atento o suficiente para que não caiam sobre você. Lembre-se de não mentir para você. Não conte fábulas ao seu coração, mas se o fizer utilize as fábulas certas ou ao menos conte a história toda. Há pessoas que apenas se atentam em chegar a algum lugar, mas não se preparam para a jornada. Ler um livro e pular para a última página é um descaso contra o herói, não concorda? Até onde sei heróis são construídos e seus passados importam. O que um livro sobre seu passado diria? Ou melhor... o que seu futuro dirá sobre você quem foi? — ela se virou. — E você não terá uma boa resposta se não tiver um passado.

Ele não respondeu de imediato, mas o fez.

— Você insiste nisso, não é?

— Acho que você não terá outra pessoa para insistir se eu não o fizer.

— É. Não vou dizer que está errada...

— Mas...

— Mas pode estar.

Ela assentiu.

— Espero que sim — ela disse. — Realmente espero. Do contrário vai lamentar por não gostar de minha persistência.

Ela voltou a caminhar. Veio na direção dele e em seguida, passando ao seu lado, foi até a porta.

— Tome cuidado com seus passeios em noites geladas — ela disse, abrindo a porta. — Não acho que você vá encontrar outra Elodia por aí tão facilmente.

Ele sorriu, mas o sorriso logo morreu enquanto ela se retirava e puxava a porta para fechá-la.

— Isto é um adeus? — Ele perguntou, se aproximando da porta.

— Sim — foi toda a resposta e para ela, por sua expressão, parecia mais do que suficiente.

Para ele não. Na verdade ele não desejava que ela partisse. Era cedo. Fora tudo rápido demais, mas ele não esperava que ela se fosse. Ao menos não tão depressa.

— Muito obrigado por tudo o que fez por mim — Pierrot disse. — Digo isto, mas minhas palavras não podem expressar minha gratidão.

Do lado de fora ela sorriu, seus olhos verdes quase brilhando.

— Me agradeça fazendo meus cuidados terem valido a pena — ela disse apenas, seus olhos assumindo um brilho que mesclava diversão e cobrança. Pierrot pensou que ela sorriria na sequência, como fizera outras vezes até o momento. Isso não aconteceu.

Elodia se foi de diante de sua porta, deixando-o com esta aberta. Foi doloroso como tão subitamente se sentiu sozinho outra vez.

Pierrot trancou a porta.

Sentou-se à cama, sua mala ao lado. O violino jazia lá dentro, mas ele não quis tocá-lo. Ele acabou apenas se acomodando ao seu lado e sentindo o fluxo de seus pensamentos retornar ao normal. Os bons. Os ruins e os muito ruins. Desta vez, no entanto, ele agiu diferente quanto aos ruins. Eles estavam lá. Ele não quis se esconder deles, entretanto.

Eles sempre estariam lá. Tentando alcança-lo. Tentando seduzi-lo.

*

Pierrot adormecera, mas seu sono revelou-se mais pesado do que esperaria depois de dias repousando. Dias em hospitais, entretanto, não era tão pouco cansativos quando se poderia dizer.

Alguma claridade invadia sua janela quando acordou. A lembrança de Elodia parada ali na noite anterior o assombrou quase de imediato. Ele não sabia que nome dar a este sentimento. Kális o assombrava tanto quanto a segunda, mas ele estaria mentindo se dissesse que se lembrou dela mais do que duas ou três vezes enquanto na presença da mulher batizada em nome de deuses.

Ou em nome do amor...

Se colocou de pé, automaticamente se espreguiçando após o tempo deitado em uma posição inadequada, levando em conta que não intentara dormir quando se deitou.

Seus olhos acabaram se movendo para a porta. Elodia outra vez lhe assaltando os pensamentos. Tentando evita-los apenas baixou o olhar para encontrar um pedaço de papel que, com melhor exame, ele concluiu ser um envelope. 

Fora até ele sem hesitar. Mais próximo ele viu se tratarem de dois envelopes. Tomando-os viu que havia números. O número “1” em um e um “2” no envelope restante. A escrita era ordinal. Então, concluiu, deveria abri-los na ordem. Abrindo o primeiro, retirou do aconchegante interior um papel dobrado. Era pequeno. Não seria mais do que um simples recado. Ao abrir viu-se diante de uma grafia misteriosa, que ficava entre a beleza de letras cursivas e traços feitos às pressas. Ele leu:

O dia surge outra vez

E você pode ouvir as asas do tempo.

Baixe suas espadas;

Ouça o sussurro nos ventos.

O tempo muda tudo

Mas é necessário saber esperar.

Enquanto isso não desista de sua alma.

Não deixe que seja tarde demais.

Elodia

Ele havia suspeitado.

O outro envelope era um pouco maior e seu conteúdo era outro. Havia mais que uma folha de papel ali. Três facilmente. As desdobrou. Eram quatro. Frentes e versos estranhamente em branco. Ele não sabia do que se tratava exatamente, o que fez com ele tornasse às palavras anteriores de Elodia. Todas as coisas ditas por ela e principalmente aquelas presentes no papel do primeiro envelope.

“Não deixe que seja tarde demais...”

Ali deixou que sua mente pairasse outra vez ao longo de sua trajetória na opaca existência. Quem era ele? O que era ele? Havia um propósito? Assim, no ir e vir dos pensamentos figuras, formas, imagens e locações tomaram sua mente. A Galeria que achava dentro de si se distorcera e ele vislumbrou um cenário jamais visto. Todavia, conforme refletia, ele pareceu sempre estar lá.

O vazio daquelas folhas perante ele pareceu desafiá-lo. Mais do que isso, pareceu pedir a ele que fosse preenchido.

Pierrot olhou a sua volta para, pela primeira vez, notar que havia uma pequena mesa à cabeceira da cama, um abajur sobre esta. Lhe serviria. Do interior do case do violino, junto ao seu caderno de anotações, ele retirou sua caneta. Tirou a pequena mesa de seu costumeiro local, trazendo-a mais próxima do leito sobre o qual decidira por se sentar. Em um último instante fitou as luzes que iluminavam o quarto. Levantou-se para apaga-las e tornando à cama deixou que a luz discreta do abajur banhasse o papel abaixo do seu olhar. Era o suficiente.

Deitara-se na cama fitando o teto enquanto deixava que pensamentos tomassem forma. Buscando concentrar-se fechou os olhos. Quando os abriu o fez quase sobressaltado, tendo percebido que cerca de uma hora havia se passado. Havia adormecido, tendo sido tragado para um sonho.

Um estranho e enigmático sonho.

Sentou-se outra vez, agora decidido a não deixar aquelas folhas em branco.

Respirou audivelmente, fechando os olhos para poder visualizar tudo aquilo que lhe preenchia os pensamentos após tão única experiência nos domínios de Morpheus; as figuras que por lá perambulavam através da paisagem lá composta. Suspirou enquanto abria os olhos, baixando-os sobre as páginas que por seus tormentos e sentimentos pediam.

Sua mão se moveu, escrevendo na parte superior da primeira página uma palavra apenas, mas que para ele era o cerne do seu sonho.

Chacal

Felipe R.R. Porto

segunda-feira, 4 de março de 2024

Inferno - Capítulo 3: Envolta em Resplendor


A próxima lembrança de Pierrot foi novamente preenchida com escuridão, mas uma que não se prolongou, pois quase que automaticamente houve luz e as sombras se recolheram para esconderijos que ele não podia ver. Estava claro, mas não claro como antes. Era o mesmo quarto, mas apenas uma luz tênue permanecia. O suficiente para que o paciente ficasse confortável e o suficiente para que este pudesse, de quando em quando, ser observado.

Estava sozinho. O estranho sonho ainda lhe pairava na mente como nenhum outro jamais o fizera. Ainda conseguia ver a estranha figura alada. Seus olhos nos dele enquanto ela o deitava e chorava por isso... O que significava? Aliás, sonhos significam algo que não aquilo existente no subconsciente?

Os pensamentos de Pierrot foram interrompidos quando a porta do quarto foi aberta e uma mulher entrava, mas parou assim que viu que ele havia acordado. Era uma enfermeira, a qual logo refez seus movimentos, se retirando, mas deixando a porta entreaberta indicando que logo retornaria e provavelmente acompanhada, supôs ele.

Seu corpo doía, provavelmente pelo repouso excessivo, que levara seus membros e músculos a relaxarem. Soube também que havia descansado tempo o suficiente, pois não havia nele nada que pudesse fazer com o sono o acometesse outra vez.

A porta, então, se abriu completamente e Pierrot se viu prestes a falar com a enfermeira, mas não pode prosseguir com isso. Não era ela quem retornava.

Ele se calou e mesmo aquilo que estivera prestes a falar fora varrido para os mais profundos recônditos de sua mente. Um lugar tão profundo que ele ainda veria dias se passando até que se lembrasse...

A figura recém-chegada tornou a fechar a porta, em seguida deslizando até seu leito. Vestia uma camiseta branca e uma saia preta que lhe conferia uma postura extremamente madura, ainda que fosse aparentemente jovem. A camiseta possuía rendas nos punhos das mangas e no colarinho. Os cabelos longos eram como um manto negro contornando o rosto onde os olhos eram tal qual claras esmeraldas perfeitamente trabalhadas. Pierrot teria duvidado da existência de um ser tão belo se não o visse, mas ele via. O rosto e a vestes, em sua brancura, eram uma espécie de sol naquele quarto. Se houvesse uma tempestade esta seria expulsa pela mera presença de mulher tão radiante.

Se esta tempestade fosse composta por suas palavras; se as palavras fossem as nuvens tempestuosas... elas haviam se ido. Só havia o silêncio. A contemplação.

— Eu não sou um fantasma — falou, então, a mulher, se sentando em uma poltrona ao seu lado. A voz era firme, mas dura, quase langue. — E também não sou uma enfermeira ou algo assim. Isso se você, como eu, não gostar de ambientes hospitalares...

— Não. Eu... — Pierrot apenas começou, oscilando entre dar uma desculpa e não ter o que dizer.

— Foi apenas uma piada, Pierrot — disse ela, sorrindo. Um sorriso que fez seu peito queimar. — Você provavelmente entendeu isso, mas por alguma razão ficou nervoso. Não fique. E também, daqui em diante, trate de evitar ficar tempo demais na neve sem estar devidamente agasalhado.

O ator e músico circense se sentiu ridículo naquele instante, diante daquelas palavras. E um idiota.

— Você vai receber alta hoje — ela avisou. — Vou te deixar no hotel onde se hospedou dois dias atrás...

        — Dois dias?

— Teria sido mais tempo se o socorro não tivesse vindo a tempo.

Seus olhos tentaram se encontrar com os dela, mas se desviaram em seguida. Pouco depois, ele arriscou enfrenta-la. Enfrentar aquele olhar apenas para perceber que ele parecia tão perspicaz quanto qualquer outro. Era como se ela fosse capaz de sondar as profundezas de sua mente, do seu coração. De forma semelhante ele foi tragado para o mar esverdeado que eram aqueles olhos.

Por um momento se viu navegando naquelas ondas, atraído por tão perfeito semblante. Se entregara sem nenhuma resiliência, sucumbindo àquela estranha. Sem sequer saber o seu nome.

— Suas roupas estão no canto — ela indicou com os olhos, a voz solene. — Se vista e logo volto para te buscar.

Ela se levantou ele se viu cheio de admiração, mas logo se repreendendo.

— Muito obrigado por tudo o que fez, mas não precisa fazer tanto.

— Não se preocupe. Vou para o hotel também. Não será um incômodo.

Aquilo o fez se calar e ele se viu entristecido por isso.

— Eu não vou embora hoje — ela disse e sorriu, se divertindo. — Não fique tão triste assim.

Está tão óbvio assim? Ele se perguntou, tendo sido tomado por uma vergonha súbita, mas que feneceu levemente quando a mulher saiu. Óbvio ou não era a verdade. Ele não gostava da sensação, da possibilidade de se sentir atraído por alguém que mal conhecia. Alguém que sem esforço o fascinou, o envolveu. Tal qual a mulher em seus sonhos ela, como se tivesse asas, as abrira sobre ele e o mero estar ali era como um poderoso, embora doce, imã atraindo uma pequena lasca de ferro.

Pierrot se levantou vacilando um pouco. Estar deitado um longo tempo talvez fizera com que suas pernas se esquecessem um pouco de como era andar. Logo chegou ao lugar apontado vendo que não eram suas roupas que estavam ali, aquelas que ele vestira na noite do ocorrido. A mulher provavelmente fora ao hotel e tratara de pegar sua mala. Por instinto ele procurou seu violino, logo percebendo o costume que se instalara nele.

Se passou mais de uma hora até que houvesse batidas na porta. Pierrot autorizou a entrada. Era a mulher de antes, agora munida de um casaco visto o frio que certamente fazia lá fora. Vê-la era deslumbrante, algo capaz de acender as velas das escuras Galerias do seu âmago. Seu peito ardia e seu coração galopava diante da perfeita imagem. Percebeu que havia segurado a respiração. Desde quando havia se tornado tão suscetível à beleza de uma mulher? Desejara intimamente sucumbir a ela, entregar-se, mas ele nada sabia. Não a conhecia. Que tolo seria se tão já lhe acabasse desnudando a alma aos domínios da desconhecida. Isto não seria sequer uma tragédia. Seria idiotice. Não?

Ainda que ela o atraísse, lhe soava inalcançável estar com alguém como ela. “Isso sim é algo que poderia ser chamado de sonho”, ele pensou, enquanto tomava sua mala e se aproximava dela, seu coração acelerando com esse simples ato.

— Está pronto, suponho — disse ela. Ele apenas fez que sim. Ela assentiu em resposta enquanto se virava e se dirigia à porta.

— Eu ainda não sei seu nome — ele disse quando já andavam pelos corredores com o típico cheiro hospitalar.

— Elodia — ela disse simplesmente.

— Me desculpe?

— Me chamo Elodia, Pierrot.

Ele franziu o cenho.

— Elodia... como a deusa Elodia?

Ela olhou para ele.

— Sim, como a deusa — ela disse quando passavam pelas portas de saída, voltando ao mundo vestido do frio e alvo manto de neve de antes, mas estava claramente mais espesso. Elodia lançou sobre si o casaco que trouxera.

Ela os conduziu a um carro pouco a frente, um sedan negro, facilmente se destacando na paisagem – qual chamou a atenção do jovem. Não era o hospital da sua cidade. Olhou ao redor para ter certeza disso, vendo os prédios se elevarem cada vez mais em todas as direções que pudesse observar.

Elodia, ou quem quer que fosse, o trouxera para um hospital que não era o de sua cidade. Aquilo o fez pensar que havia anos não ia até lá. Porém, não lamentava por isso. Pelo contrário.

A esbelta mulher se dirigiu à porta do motorista e Pierrot à do carona. Não conseguiu evitar um sorriso sarcástico, apesar de tudo o que se passara.

— O que foi? — Elodia perguntou, certamente tendo notado o sorriso. Um sorriso levemente descontraído lhe brotando nos lábios, o calor aquecendo o peito de Pierrot em seguida.

— Nada de mais — ele disse. — Mas não é todo dia que tenho a oportunidade de pegar carona com a Deusa do Amor.

Ela balançou a cabeça diante da piada que ele mesmo percebeu sendo péssima. Aliás, ele sabia que era. Porém, não acho que teria mal em responder a pergunta.

— Espero que seja uma boa experiência — ela disse quando já estavam dentro do carro, os cintos sendo postos.

— Bom, não vejo razão para não ser...

— Talvez pelo fato de você não ter mencionado a segunda parte do meu título — ela se divertia, adquirindo um tom soturno enquanto concluía: — Deusa do Amor... e da Morte.

Pierrot, ainda que alguns que fossem ver a situação como macabra, sorriu com a conclusão.

Ela deu a partida e logo estavam cruzando a cidade, pouco depois a deixando e se lançando em uma rodovia que os levaria de volta. “Elodia”, ele pensou no nome. Sentiu vontade de dizê-lo em voz alta como se para saboreá-lo, mas não. Não podia. Não deveria se dar esta oportunidade, pois temia saber onde ela o levaria. Deveria deixar as coisas como estavam antes de ela chegar: ela envolta em seu resplendor e em gloriosa aura e ele, esquecido e irreconhecível, na escuridão de sua existência.

Felipe R.R. Porto

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Inferno - Capítulo 2: Gabinete dos Sentimentos

        


        Pierrot despertou em um sobressalto, as coisas que vira no estranho sonho (ou pesadelo?) ainda presentes demais em sua mente.

Estava em um local escuro o que, devido ao que se recordava do sonho, o fez seguir imaginando a narrativa Dantesca. Relembrou O Limbo, o local destinado aos pagãos ditos virtuosos. Lá tudo era a mais plena escuridão. Lá não haveriam os horripilantes gritos de dor das almas. Lá, ainda que em dor, só se ouviria seus suspiros...

Quanto do que se lembrava era sonho? Quanto era verdade? O frio? A angústia? Aquela mulher... realmente a vira? Não sabia dizer, visto que pouco depois sua consciência o abandonara. Ele chegou a crer que não fora apenas a consciência, mas tudo o que era, tudo o que o mantinha vivo.

Creu que seria tragado para a imortalidade. Para o além. Não o fora, porém.

Havia retornado. Continuava no mundo qual chamava de lar. Se ele chegou a ser apenas uma “alma”, agora tornava a ser uma “pessoa”. Não iria para as regiões etéreas quais olhos humanos não podem ver – não podem contemplar.

Seus pulmões se encheram dolorosamente enquanto respirava. A dor. Certamente fora aquilo que o levara até ali, onde se encontrava. Pensou se seria o cigarro, mas concluiu que seria equivocado acreditar nisso. Fumava, mas não tanto e também não há tanto tempo. Certamente que fora alguma outra coisa.

O frio. O Inverno... mas principalmente aquilo que o fizera permanecer lá, congelando.

Os olhos do rapaz estavam abertos, mas muito pouco era visível. Era um quarto, ele não teve dificuldade em concluir, mas não se importando em se ater aos detalhes do lugar. Havia algo mais urgente, algo que insistia em lhe tomar a mente: estava vivo. Era uma conclusão extremamente simples, mas que estava tendo um efeito inesperado sobre ele.

Desejara morrer nos últimos anos. Assim, ele pensava, findaria suas angustias. No entanto, ter “ido e voltado” – ele não se sentiu mal por pensar assim – lhe acendera o desejo de viver novamente.

Ali estava ele, em seu escuro e estranho Gabinete Dos Sentimentos. Sim, de fato poderia tratar o local assim. Tanto sentira ali em alguns poucos minutos. Tanto já havia pensado ainda que não tivesse sido tragado para uma reflexão longa e cansativa. Houve medo, houve dúvida. Houve angustia, dor e uma torrente de lembranças. E houve alívio. Houve mais, tudo se unindo e o fazendo pensar, pensar e pensar... Não era necessário ter mais tempo do que tivera. O mero sentir das ondas lhe chegarem aos tornozelos já era evidencia o suficiente de que o mar estava diante de si. “Eu estou vivo”, ele pensou e foi sua última lembrança antes de ser tragado por um sono inesperado, mas que aceitou de bom grado, se entregando à atração deste.

Quando despertou o local, seu Gabinete, antes escuro agora estava iluminado o suficiente para que seus olhos doessem. “Escapara d’O Limbo?” Sua mente automaticamente exigiu saber, ainda mantendo Dante em vista. O local possuía paredes claras demais. A luz que pendia do teto parecia ser refletida por estas, fazendo com que visse borrões em padrões de branco e azul translucido. Uma forma vestida de branco estava à sua direita. Um médico? Aquilo o fez lembrar-se de um sonho. Aquele estranho sonho que tivera dias atrás, onde morria sem que ninguém o ajudasse. Um grito de ajuda sentenciado a não ser atendido...

Os olhos de Pierrot, já acostumando-se ao ambiente, deixaram a figura agora já óbvia do homem revelado ser de mais idade e migraram para uma de vestes escuras á sua esquerda. Possuidora de uma beleza quase desumana e de olhos verdes que o fitaram naquele lugar de um branco reluzente.

E renuncia.

Seus olhos novamente se fecharam, a escuridão da inconsciência caindo sobre sua visão, engolfando tanto o médico quanto a mulher de traços suntuosos... e ele sonhou com ela.

Lá, em seus sonhos, uma paisagem escura à beira mar, como se aquelas águas estivessem iradas e, em breve, após a preparação, ondas terríveis fossem vir sobre os litorais. Pierrot estava descalço, os pés afundando levemente na areia anormalmente fria. Seus cabelos ondulados à influência do vento.

Um vento que parecia gemer.

Naquelas mesmas areias, alguns metros à sua direita, ele avista uma forma feminina trajada de vestes tão negras quanto a noite abandonada pelo luar e ainda encoberta por espessas nuvens.

Ter despertado trouxera a Pierrot alguma esperança, mas ali, diante dela, era como se esta mesma esperança fosse tragada. Era como as ondas que vinham e na volta levavam, pouco a pouco, algo consigo.

Ele sentia o mesmo quanto àquela pequena luz antes bruxuleante em seu coração. A vela antes evanescente agora ele descreveria apenas como fraca. Pequena, mas não diminuía ou ameaçava se apagar.

Ela, aquela Escuridão, aquela figura, parecia almejá-la também.

Ela, a Escuridão, era tal qual a morte perante os homens, perante a vida. Ela tiraria suas esperanças e deixaria, após também retirar a luz, tudo envolto em surda penumbra. Esperança e Luz. Ela se alimentaria dele e viveria, viveria e viveria. Aquela estranha figura, cuja escura aura intentava juntar-se às enferrujadas nuvens acima, queria vida. Talvez, como maioria dos que ele conhecia, vida eterna.

Nos olhos dela, enquanto os ventos lhe provocavam calafrios, Pierrot percebeu-a ciente quanto a seus efeitos sobre ele. E percebeu mais: ela queria que ele soubesse quem ela era. Quem ela verdadeiramente, intimamente, era. Algo o fez sentir que, estranhamente, ela não quisesse lhe ferir ou fazer mal. Como saber? Como chegar a tal conclusão depois de tais imagens?

Ela, a Escuridão, qual teria sido capaz de fugir dos gloriosos raios do Sol e deles teria se escondido. Confiaria nela? Ela, que, na sequência daquele sonho perturbador, desfraldou ardentes asas e se ergueu naquela paisagem pintada com cores escuras – como uma pintura feita sobre uma tela já cinzenta. Ele, por um momento, olhou na direção das ondas, seu olhar como o de quem vê algo ao longe... Pierrot acompanhou-a, ainda que estivesse com seus pés sobre a areia e ainda que fosse provavelmente impossível avistar o que ela avistava. Ela pousou sobre rochedos contra os quais as ondas arrebentavam.

Ele quis ir até ela. Quando perto ele sentiu medo, temor. Dúvida. Agora que ela se afastara, ainda que pouco, ele se via atraído por ela. Sombria, mas de alguma forma radiante como as estrelas e ele, naquele sonho, se viu incapaz de resistir ao impulso de buscar alcançá-la. Assim, imerso no sonho surreal, Pierrot achou-se sucumbindo àquele singular irradiar...

...e pouco depois ele, ainda sem saber como, estava nos braços dela. Ela chorava enquanto o deitava nas areias frias daquele litoral.

Os olhos dela – marejados olhos – eram verdes. Ali, então, ela o deixou antes de tudo escurecer outra vez.

Felipe R.R. Porto

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Inferno - Capítulo 1: Intro

Pierrot estava de volta ao parque, a grande tenda do circo assomando diante dele. O clima não havia mudado. O vento continuava soprando forte e frio, dizendo que a pouca neve que cobria o gramado agora logo seria substituída.

Instintivamente ele apertou os punhos, alguns de seus deos estralando diante do esforço, mas não eram as bolas de malabarismos que trazia consigo. Ergueu as mãos e lá estavam seus violino o arco. Os fios de crina tremeram brevemente ao vento, zunindo de leve. Também estava com as roupas do “Arlequim”.

Aquilo era estranho.

Olhando novamente para a enorme armação coberta diante dele notou que a entrada se abria - as lonas se abrindo, se recolhendo para os lados. Era um convite. Era um pedido para que adentrasse o lugar. Havia uma abertura, mas ele não via nada mais. Não ouvia nada. Além da lona havia apenas escuridão e o silêncio. Era como a típica armadilha que um predador camuflado faria a sua preza.

Era esperado que ele entrasse.

Ele não o fez, porém.

Se colocou a caminhar pelo parâmetro do parque que ele tão bem conhecia, mas se deparou com o local totalmente deserto. Os trailers repousavam em requintado silêncio. Pensou em tentar entrar em um deles, mas viu-se parando. Se seus colegas estivessem mortos? Ele queria ver isso? “Tolice”, logo pensou, concluindo que a probabilidade de isso ter acontecido a todos era inexistente.

Decidiu-se por ignorar os trailers.

Alcançou as delimitações do parque quatro vezes, tendo ido para Norte, Sul, Leste e Oeste. Cruzou-o quatro vezes, concluindo que em todas as direções ele apenas encontrava a mesma quietude incômoda. Em todas as direções apenas o horizonte sem fim e acima o céu com nuvens quais eram como se tivessem sido feitas de pedra lascada. Frígidas. Prestes a cair pesadamente e esmagá-lo.

Tudo familiar demais. Tudo frio demais. Tudo, ele decidiu por fim, doloroso demais. Quantas alegrias tivera naquele lugar? Poucas. Quantas tristezas...? A resposta era diferente. Talvez ele estivesse sonhando. Talvez fosse uma espécie de Inferno apenas dele. Mas... o que viria a ser um inferno? Fogo? Tormento? Como classificar o que seria um tormento? Certa vez lera que “a Terra é o único Inferno que aqueles que iriam para o Paraíso conheceriam. E a Terra é o único Paraíso que aqueles que iriam para o Inferno conheceriam.”

Sim, de fato, aquele poderia ser um Inferno. O Inferno dele.

Ou não. Talvez, considerando Dante, fosse apenas O Ante-Inferno ou algo semelhante a este. Um local onde estariam aqueles que não iriam para os Céus assim como os que não iriam para o Inferno. Estremeceu, pois era horrível o bastante segundo lembrava, embora o que visse não chegasse a tal nível.

Após mais uma caminhada ele se viu no mesmo lugar de antes. Diante da entrada do circo. Desta vez, no entanto, ele pareceu ouvir algo. Como se alguém o chamasse... lá de dentro. Das sombras. Uma voz ínfima permeando o silêncio.

O que significava? Ele não sabia. Ele apenas saberia se a seguisse. Queria, porém, realmente segui-la? A resposta era um duvidoso, incerto não. Ainda assim, havia outra pergunta, para a qual a resposta também era não:

Ele queria permanecer ali?

Suas mãos novamente agarraram firmes aos violino e arco. Ele engoliu em seco, o coração palpitando, quando começou a caminhar na direção da escura tenda, tão silenciosa como uma cripta o seria.

Talvez, ele chegou a pensar, estivesse saindo do Inferno. Todavia ele não descartou a possibilidade de que, na verdade, estivesse adentrando ele.


Felipe R.R. Porto

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Satura - Capítulo 6: Chama Ao Vento

Começara a realmente nevar. A luz em alguns dos postes piscava.

Pierrot ainda ouvia o estranho silêncio. Tão incomodo e terrível silêncio. Quis saber até quando haveria de se prolongar.

Ele havia parado um tanto longe do hotel, de frente a uma loja com amplas vitrines, mas a escuridão no interior do estabelecimento fazia com que a grande peça de vidro se tornasse um imenso espelho. E ali estava. Parado... naquele grotesco silencio, mas inconformado com ele.

Uma voz solitária no vasto espaço silencioso.

Uma vela na vasta escuridão. Lembrou-se, fatalmente, da vela vista antes de deixarem a igreja instantes atrás – ele, inclusive, se perguntou a quanto tempo estivera parado ali, sendo castigado pelo clima em vias de se intensificar.

O ministro, sua mente o fez continuar a rememorar, havia fechado as portas do templo. A vela, assim, estaria a salvo. Não haveria mais esforço para resistir ao soprar do vento, não teria mais de lutar para que seu calor e luminosidade se mantivessem.

Pierrot não estava na mesma situação. Havia o vento e ele era a vela exposta. Kális, em sua mente, em seu coração, por tanto tempo sua luz pequena e preciosa também estava lá. Também uma vela, mas ela se apagava. A vela dela não suportaria aqueles ventos. Ela se apagaria...

O jovem decide se mover, mas quando o faz apenas se vê na vitrine. O estranho espelho formado pelo invisível e pela escuridão visível. Vê seu rosto jovem, mas cansado. Jovem, mas preocupado. Ele força um sorriso, uma força que o consome ligeiramente. Ele suspira fartamente, seu hálito quente embaçando a vitrine, onde seu rosto se torna apenas um borrão pouco a pouco desaparecendo à medida que ele dá passos atrás, virando-se, não tendo intenção de encarar-se outra vez.

Lá está o hotel. Ali estava Pierrot. Estático. Silencioso. Mudo. Uma figura no inverno e então há um chamado...

Por um momento ele se vê desperto, olhando à sua volta em busca da origem do chamado, mas seus olhos não encontram nada ainda que esperassem encontrar alguém, mas não houve sucesso. Ele esperou e esperou, ainda procurando, mas logo houve o silêncio novamente e, então, a solidão. Havia a esperança, mas há a sobriedade e, por fim, a renuncia a qualquer coisa que tivesse ouvido. Estava sozinho, tragado para uma funesta monotonia estática.

Não houve um segundo chamado. O vento, no entanto, soprou mais forte, um silvar choroso que perdeu-se penumbra adentro. Pierrot, que havia recuado diante da imagem do espelho agora se vira novamente diante desta, impelido pela reação mediante o vento repentino, obrigando-se a procurar abrigo.

Outra vez ele respira diante de si mesmo, sua imagem sendo outra vez embaçada. Minutos se passaram quando ele percebeu o vento sossegar, embora não cessar, e uma neblina chegar sorrateira pelas ruas; um fantasma translucido e rastejante. Mais um dentre os tantos fantasmas vistos naquela noite salpicada de cadentes flocos alvos, os quais se empilhariam a fim de erigir diversos monumentos disformes, anunciando e firmando o reinado do inverno pelos próximos meses.

Um sobressalto lhe toma quando ele vê, por cima do ombro, no reflexo, uma silhueta na neblina. Ele se volta, girando rapidamente nos calcanhares, a fim de escrutar a cortina esbranquiçada diante dele. E não vê nada. Um arrepio lhe percorre o corpo, tão vivido como se a fria brisa lhe tocasse o corpo nu. Não pôde deixar de sentir que alguém o observava. Mas talvez estivesse errado. Talvez fosse um fantasma. Outro. Seria apenas mais um visto dentro da já fantasmagórica neblina.

Havia nele o crescente anseio de que a tempestade realmente viesse avassaladora. Mas ela, por fim, não viera. Não ainda. Os ventos sopraram insistentes, mas apenas para trazer a neblina... e isso foi tudo.

Ali, havia apenas ele cercado de neve. Ele, uma vela que poderia ter sua chama, seu calor e brilho tomados pela neve que cobria tudo ao redor. Sua chama, em seu coração outrora tão aquecido, ameaçava falhar... Fraca, tão fraca.

Aqui, então, ela expira.

Aqui, então, o corpo cansado falha, se entregando ao frio. Derrotado pelo inverno, pelo silêncio. Pelo medo e pela solidão que tanto o açoitaram, o castigaram até então.

"A sátira perfeita", ele pensou antes de colapsar na brancura da paisagem.

Os olhos de Pierrot se abrem. Sua realidade, ou seu sonho acordado, não havia chego ao fim ao que parecia e seu corpo ainda desejava a vida – seu desejo de continuar viviam. Ainda que mais em sua carne e ossos que em sua alma.

Imóvel ele permanece sobre seu leito de gelo. Sentia as juntas começarem a doer, mas não se movia.

Era como se ainda estivesse esperando algo...

... talvez esperando o sol nascer.

Mas não há um sol, pois ainda é noite, embora ele não soubesse que horas eram. Contudo, há sim algo que brilha, reluz diante de seus olhos exaustos. Mãos tocam as suas. Mãos quentes tocam a suas tão frias e ele vê um rosto diante de si.

Não era o sol, mas irradiava.

A mulher sorriu, provavelmente diante da reação de alguém que talvez pudesse estar morto. Ela sorriu. Não um sorriso como o de Kális, mas que ainda assim pareceu cavar a carne de Pierrot como havia anos não acontecia... como ele achava que jamais fosse acontecer. Ou não tão logo.

Se a vela havia se apagado... agora tornava a estar acesa. Ou se esforçava para estar.

— Me chamo Elodia — disse ela sorrindo e Pierrot simplesmente se viu desejando que aquele sorriso, como se fosse divino, durasse para todo o sempre.

Que jamais se fosse.

Felipe R.R. Porto

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Satura - Capitulo 5: O Silêncio

Deixara a igreja pouco depois de Kális ter retornado. Uma vela bruxuleava ao vento quando cruzavam a porta. A mesma parecia, em momentos, que se apagaria, mas persistia.

A praça já se esvaziava e mesmo as ruas quais a acessavam tinham poucas pessoas. Pierrot não tinha um relógio consigo, mas temeu que ele e Kális houvessem demorado mais do que pensavam.

— Agora é hora de nos despedirmos — ela disse a ele quando saltaram do último degrau da escadaria, parando um de frente para o outro. Pierrot pode ver a porta da igreja se fechando. Aquilo lhe ofereceu estranho alívio, pois a forma como a vela quase se apagava o havia incomodado. Não queria que ela se apagasse. — Espero não demorar tanto para voltar a te ver.

Ele sorriu.

Ela sorriu de volta, um sorriso deslumbrante, qual ele sabia ser incapaz, ao menos no momento, de devolver a altura. Por sorte ela sabia disso.

— Também espero por isso.

— Cuide do “Pierrot” no interior das suas Galerias...

— “Cuidar” não é bem o que eu gostaria de fazer com ele.

— Mas pode ser o que precisa fazer — ela disse, se aproximando e o abraçando. Ele sentiu seu corpo se arrepiando e não foi de alegria. Dentro de si aquilo pareceu... doer? Ainda assim ele a envolveu em retribuição.

Aquilo fora o certo a se fazer, pois sentiu o mal estar esvair-se aos poucos. Não era sobre não gostar dela, ou sobre evita-la. Era sobre evitar o ser humano. Ele e ele apenas sabia o quanto evitaria a si mesmo se fosse possível fazê-lo. Sim, havia formas de inibir desejos, impulsos ou pensamentos, mas não era saudável. Poderia apenas prejudicar-se ainda mais.

— Se cuide também — disse ele. — Cuidado com seu coração. Suas perguntas lá dentro não me soaram apenas como perguntas aleatórias.

Eles se afastaram, seus olhares se cruzando. O dela estava levemente marejado. Pierrot se aproximou dela e segurou seu rosto – pálido rosto – entre suas mãos, puxando-o leve e carinhosamente para perto de si. De forma leve e carinhosa foi que ele lhe beijou a fria testa. Demoradamente.

Se afastaram outra vez.

— Ouvi uma vez que as pessoas frias tem os melhores carinhos — ela disse.

— Me considera frio?

Ela deu de ombros, ainda chorosa.

— Você não é “quente” como a maioria.

— Isto é um problema — lamentou ele, mas em seguida notou que ela balançava a cabeça.

— Não — ela disse. — Em você não.

Assim, sendo estas suas últimas palavras, ela começou a se afastar. Longe o bastante ela se virou, lhe dando as costas enquanto seguia para um grupo de pessoas. Sua família. Pierrot não os vira ali.

Ela se fora e, por um momento, ele se viu sentindo falta de que ela o tivesse tomado pela mão e o levasse consigo, como fizera outras vezes naquela noite.

Todos se foram e ele estava, outra vez, sozinho na praça. Apenas o vento lamentava, falando de suas tristezas às arvores que choravam emitindo o som das folhagens. Não havia mais canto na igreja.

Silêncio. Havia outros sons, mas, repentinamente, tudo pareceu silêncio para o jovem.

Ele não demorou em deixar a praça, qual agora usava um manto mais espeço de neve, o fazendo repreender-se por não ter notado o quanto a esta havia coberto da paisagem desde cerca de uma ou duas horas. Estivera realmente tão distraído assim? O manto cobria os telhados ao redor e as ruas viam-se alvas a não ser por onde veículos haviam passado durante aquela noite. Pierrot parou, fitou o céu por alguns segundos e recomeçou sua caminhada, refazendo o caminho que o trouxera até ali. Acima, contrastando fortemente com o branco abaixo, o céu era uma placa negra. Uma nevasca viria naquela noite e não seria fraca.

Passos rápidos logo levaram Pierrot para a rua do hotel onde se hospedara, ainda que tivesse ainda cerca de quinhentos metros a prosseguir até alcançar o mesmo.

Um vento frio soprou, fazendo com que arrepiasse. Cerrou os dentes a fim de que estes não começassem a bater diante da exposição à baixa temperatura. O arrepio o fez lembrar-se do último que lhe acometera, quando fora abraçado por Kális instantes atrás. Ele havia se repreendido quanto à sensação, mas a entendia. A entendia perfeitamente assim como entendia o frio que lhe almejava congelar o viscoso liquido quente que lhe fluía pelas veias. Involuntariamente havia cultivado dentro de si um sentimento de repulsa quanto aos seres humanos. Não por que não amasse as pessoas ou tivesse asco destas, mas por elas não se amarem mais umas às outras e tivessem nojo uma das outras...

...e isto se via cada vez mais. Um requintado ódio que mais e mais fluía pelos corações da humanidade. Uma doença que se espalhava livremente sem algum tipo de fronteira ou barreira, sem limites que a impedissem de prosseguir com o contágio por toda a linhagem – nobre linhagem – dos homens. A igualdade permanece sendo igualdade, mas há uma estranha divisão que separa raças na mesma intensidade em que sexos se diferem.

— Ah — lamentou Pierrot audivelmente, sua voz unindo-se ao frio lamuriar do vento —, repulsa que se revela mais e mais a este mundo...

Era a verdade. Pessoa nenhuma viu. Pessoa nenhuma ouviu. Logo ninguém falará a respeito. Há sangue pelas ruas, mas nada aconteceu.

Ninguém sabe de nada.

O que estava acontecendo? Ouvia-se com frequência do quão evoluído e racional era o ser humano em detrimento das demais formas de vida animadas. Pierrot tinha dúvidas sobre o que era ser racional para a maioria das pessoas. Ele não precisava pensar muito para afirmar, com certeza, que dentro da igreja na qual estivera há pouco haviam pessoas que mesmo tendo unido as mãos em oração diante de Deus não hesitariam em avidamente matar pouco depois. As mesmas mãos que se elevavam suplicantes em orações em favor da paz seriam as primeiras a acorrentar e fazer prisioneiros. As mesmas bocas que se abriam e clamavam por piedade seriam as primeiras a falar de culpa, as primeiras a julgar – não mostrando a misericórdia que tanto buscavam paras si mesmas.

Há quem vá falhar e morrer, assim como há quem vai viver. Há olhos que verão a estas coisas. No entanto, há olhos que haverão de apenas se fechar antes elas.

E o sangue continuará escorrendo, mais e mais. Não há quem queira interromper a torrente carmesim lhe persistente flui. Clamando pelas ruas assim como o rubro sangue do precioso Abel clamou a Deus. A diferença, contudo, reside no fato de que ninguém sabe de nada. Ninguém ouviu e, assim sendo, ninguém falará.

O que persiste é o silêncio.

                            O terrível e cada vez mais ensurdecedor silêncio.

Felipe R.R. Porto

domingo, 20 de agosto de 2023

Satura - Capítulo 4: Tentação

...mas ele não passaria por tudo aquilo novamente. “Prefiro morrer”, pensou ele, um tanto quanto amargamente.

— Já volto — Kális disse, um tom perene na voz, se retirando. Pierrot acompanhou-a com os olhos enquanto se juntava a um pequeno grupo no início do corredor pelo qual vieram. Não duvidava que fossem seus pais e familiares. Não duvidava também que vieram à sua procura para partirem e, havia uma boa probabilidade, para a repreenderem.

Pierrot deu as costas para a cena, voltando a ser imerso pelos pensamentos recentes.

Sua mente, naquele instante, buscava fitar o passado, mas este estava cinzento, como se uma espessa névoa lhe turvasse a visão. Era uma espécie de defesa que surgira com os tempos, anuviando sua perspectiva a fim de que não se ferisse. Um mecanismo.

Havia muito que ele mesmo gostaria de compartilhar com Kális, mas eram palavras duras que, mesmo o mero pensar o deixavam levemente nervoso. Não, aquelas palavras jamais deveriam ver o mundo. Deveriam permanecer com ele. Permanecer nele e, se necessário, ir para o túmulo quando seu corpo cansado finalmente para lá fosse.

Seu silêncio, então, era necessário. Palavras podem ser distorcidas. A serpente distorceu as palavras de Deus. Pierrot queria escapar da possibilidade de ter as suas distorcidas por humanos. Sim, Kális era sua amiga, razão pela qual devesse confiar mais nela. Correto?

Ele não tinha certeza. Não mais.

A conhecia bem demais. A maldita memória permanecia lá. A amizade é um belo laço, mas pode, em circunstâncias, se tornar um escudo inconveniente. O amigo sabe demais, conhece demais, mas quando a amizade se concretiza? Amizade é sempre estar junto? Amigos sempre concordam? Amigos... mentem? Ao longo dos anos o medo se enraizara vigorosamente em Pierrot tal qual uma planta parasita o faria a uma dríade, a adoecendo. Ele não conseguia evitar. Não era forte o suficiente. Não confiava. Todos os seres humanos, em sua ardilosa forma, em momentos soavam tal qual inimigos.

Amava a Kális, admitia. No entanto agora temia que tal sentimento fosse apenas uma cortina erguida por alguém que o apunhalaria através dos tecidos. Ele não perceberia o golpe vindo. Não reagiria.

Aquele era um dos infames momentos onde o que pensava não se alinhava com o que professava crer. Seus olhos novamente se alinhavam com o crucifixo à frente.

— Amor sacrificial — disse ele, um suspiro sendo liberado em seguida. Pareceu doer. — Consigo amar, Senhor. Contudo, consigo me sacrificar?

Ambos sabiam que não.

A presença de Kális naquela noite viera como uma neblina intensa, tal qual aquela que repousa densa em baixios úmidos e frios – densa e quase palpável. Parte dele ansiava pelo passado. Profundamente. Ali, em silêncio na gélida e imaginária neblina, ele conseguia ver algo; apenas contornos, silhuetas, mas era o bastante. Ali ele pôde ver, como se sua memória tivesse se tornado matéria.

Seu passado se tratava apenas de ruínas. Nada mais.

Medo. Medo. Medo. Apenas isso havia ali. E uma insignificante fagulha de esperança. Essa fagulha o fez querer se adiantar na direção da neblina, adentrá-la. Ver se lago jazia em suas entranhas, além das silhuetas.

— Quem sabe — ele disse para si — não há alguma beleza entre os escombros? Quem sabe se lá não encontro minha deusa, minha Vênus singular, da qual conhecerei toda a plenitude?!

Seu coração pulsara forte. Firme. Ele se vê estendendo uma das mãos para tocar as ruínas, mas a recolhe rapidamente em seguida, sua face se distorcendo ao mero pensar, o mero recordar-se da dor.

Ele recolheu a mão como alguém que, hipnotizado, mas agora desperto, vira-se prestes a colocar o braço dentro da terrível toca de escorpiões.

— Eu prefiro morrer! — disse Pierrot entredentes, toda a paisagem se dissipando e ele se vendo novamente na igreja cada vez mais silenciosa.

Ouviu passos às suas costas. Virou-se em tempo de ver Kális retornando.

“Vênus...”, sua mente cantou. Lá, nas profundezas, nos corredores das galerias, ele pedia por ela. Se ela lhe verdadeiramente lhe pertencesse a ela se dedicaria, estaria sempre à espera dela para se dedicar a ela, apenas a ela e plenamente a ela. Ele se devotaria a ela tal qual um fervoroso acólito, feito aqueles que em suas fés se prostram diante de seus deuses. Pediria por mais dela, a despiria a fim de conhecer sua sacra essência em profundidade. Prometeu, conta o mito, fora atado a rochas, e Pierrot sabia que se ataria ao enlevo pálido dos seus seios, alvos como o frio e elegante mármore. Ele se submeteria apaixonadamente a ela, se esconderia sob suas asas... Lembrara-se de dias em que entregue à imensidão de seu sentimento viu-se indagando se era ela uma deusa pálida ou apenas um comum ser humano. No fim não importava, pois seu âmago pedia por mais dela, por mais da sua presença...

Se ela fosse a personificação de um abismo ela pediria para que ela permitisse que ele caísse em sua vasta imensidão...

Ela parou diante dele. Sorriu. O mais belo sorriso que já vira. Ao invés de torna-lo ainda mais imerso em seus pensamentos, isto o fez despertar, rejeitando cada singela tentação.

“Não”, ele disse mentalmente, sorrindo de volta para a bela diante dele. “Eu prefiro morrer a viver tudo isto outra vez.”

Felipe R.R. Porto