domingo, 17 de março de 2024

Inferno - Capítulo 4: Olhos Cegos não podem ver


— Você não passou mal simplesmente, não é? — A voz de Elodia quebrou o silêncio que havia se instaurado desde que entraram no carro. Já estavam na rodovia há pouco mais de quinze minutos.

Pierrot apenas lhe lançou um olhar, logo o desviando, voltando a estudar a paisagem branca e cinza daqueles dias através do vidro ao seu lado. Desde aquela manhã Inferno, parte da atemporal Divina Comédia de Dante, tomava seus pensamentos. Tornara-se uma espécie de lente pela qual sua mente insistia em enxergar tudo.

Não precisava respondê-la. Ela mal o conhecia e ele poderia dizer que a conhecia muito menos. Ele, ao fim, queria apenas deixar o passado para trás...

No entanto, ela fora a responsável por ele ter essa oportunidade. Talvez ninguém pudesse ter feito por ele o que ela havia feito. Ele não tinha a obrigação de respondê-la, mas devia gentileza. E ele não precisava lhe dar os detalhes. Aqueles olhos dela pareciam ver mais do que aparentava.

— Há questões que nos perturbam a alma — ele disse, ainda olhando para fora —, e há algo que nos perturba tanto a alma que nossa carne não consegue se manter incólume.

— Realmente — ela disse, ainda fitando a estrada, concentrada no que fazia enquanto conduzia o veículo por uma curva levemente sinuosa onde arvores em dias anteriores estariam verdejantes. Não naqueles dias, pois agora eram apenas parte da paisagem. Pouco do seu verde estando exposto e, estando um dia escuro, mesmo esse verde pendia para o tom musgo.

Logo tudo estaria ainda mais sombrio, mesmo tenebroso, com a chegada da noite.

— Está mesmo evidente a ponto de você saber o que houve? — Pierrot acabou por perguntar.

— Aos meus olhos sim.

— Talvez eu deva concluir que seus olhos não são comuns...

— Talvez...

Pierrot voltou o olhar para ela. Encontrou-a olhando para ele. Ela deveria ser poucos anos mais velha do que, mas havia algo naqueles olhos e no modo como ela sorriu em seguida, algo que parecia dizer que ela vivera em seus vinte e tantos anos coisas que alguns viveriam apenas mais tarde na vida.

Pela primeira vez Pierrot se vira afeiçoado à mulher. Antes, ele supunha, fora mera atração física. Agora ele se compadecia dela quase ao ponto de se culpar pela desconfiança quanto ao fato de não conhecê-la.

Um flash lhe trespassou a mente, fazendo com que se recordasse, então, que não fora naquele dia que ouvira o nome da mulher ao seu lado pela primeira vez. Também não havia sido a primeira vez que vira seu rosto.

Ela, naquela noite fria, realmente esteve lá. Naquela noite tão fria. Ele vira seu rosto e também ouvira, pela primeira vez, o seu nome.

Elodia.

— Já viveu algo parecido? — Pierrot perguntou.

Ela apenas assentiu.

— Lamento.

— Não lamente muito — ela disse, uma torção nos lábios, um sorriso sarcástico.

— Devo lamentar pela metade?

— Lamente com controle na intensidade, eu diria.

— Como se eu devesse sentir alguma alegria pelo mal que te aconteceu?

— Exatamente... — ela começou a falar enquanto acionava o limpador do para-brisa — ... isso. E pelo que vejo isso é algo que você não costuma fazer.

Era uma verdade, mas a forma como ela falava era como se ele estivesse errado. Errado em querer deixar o passado e as dores para trás.

— Nunca deixe toda a dor para trás, Pierrot — ela disse, causando nele um sobressalto, o fazendo temer ter pensado alto. Porém, não o havia feito. — Ela tem sua importância.

— Não seria mais simples se ela, a dor, não existisse?

— Seria, mas ela existe. Sempre existirá não importa aonde você vá.

Elodia suspirou, não como por impaciência, mas apenas alguma forma de cansaço.

— A dor fará com que se lembre em que lugares pode ou não pisar — ela disse em seguida. — Somos, todos nós, livros a serem escritos. Conheci uma vez uma pessoa que tinha um caderno... um diário, onde escrevia o que sentia. À lápis. Ela, ao concluir o texto ou pelo menos tendo posto ali o que era necessário, apagava. Sei que cada um de nós tem suas formas de lidar com a vida, mas não acho que apagar algo dela será eficiente. Você não será um bom conselheiro se escolher deixar tudo no passado – você não me parece uma pessoa que deixará os outros sofrerem gratuitamente, Pierrot. Há pessoas que vão se machucar por ser inevitável, pois nunca fizeram aquele caminho, mas você poderá avisá-las. É comum que aprendamos com nossos erros, mas há um pouco de sabedoria, você há de concordar, em ver outros caindo e não querer cometer o mesmo engano...

— Acredito que funcione para você.

— E digamos que neste momento estou tentando a mencionada parte dos conselhos.

Pierrot não conseguiu evitar sorrir, a cidade se tornando visível. Não mais os prédios altos perfurando o céu, apenas um ou outro sobrado e menos ainda edifícios maiores.

— O medo é um mal necessário, eu diria — Elodia prosseguiu. — Porém, há medos positivos e negativos. O medo negativo vai te atrapalhar no que é importante, te impedindo de progredir. Por medo você poderia, por exemplo, fazer o que a pessoa que mencionei fazia. Ela escrevia e apagava, restando apenas páginas com sombras de rabiscos, a mente talvez envenenada por crenças impossíveis enquanto outras páginas deveriam ser preenchidas. Ela não vê, mas está presa. Não está vivendo uma historia, mas está compondo uma espécie de fábula perfeita e eterna – totalmente oposta a este mundo. Mundo este que soa cada dia mais estéril; a poeira sendo tudo o que há na superfície, mas os corações não estão muito diferentes. Não há poeira, mas há frieza.

Ela fez uma pausa, a sombra noturna agora não mais sendo o suficiente para cobrir as luzes da pequena cidade cada vez mais próxima.

— Temo não conseguir enxergar as coisas desta maneira, Elodia — ele disse simplesmente, o peito outra vez acalorada diante da mera menção do nome.

Ela meneou a cabeça.

— Talvez apenas não queira — ela disse enquanto finalmente adentravam a cidade sem reduzir muito a velocidade, os pequenos edifícios, com dois ou pouco mais andares, passando ao lado feito borrões enquanto a luz, entre magenta e laranja, dos postes quase os tingia. — Olhos cegos não podem ver e não se discute isto. Esta é a realidade deles, qual não existe para nós, assim como a nossa não existe para eles. Você certamente é familiarizado com o dito “o pior cego é aquele que não quer ver”. Dentre todos os medos acho que o maior medo que devemos ter é de que estejamos enganando a nós mesmos e este seria um medo positivo, creio. Você pode enxergar as coisas assim se quiser, mas não se prenda ao passado – seja ele de risos ou de lágrimas. Um passado cheio de risos te fará sentir medo de um futuro onde eles possam ser ausentes se foram tudo o que teve. Um passado cheio de dor pode te fazer crer que pode não haver esperança para um futuro diferente. Creio que não há como escolher apenas um. Risos e Lágrimas estão mais unidos do que pensamos, são feito os trilhos do trem que correm lado a lado. Nós estamos no trem. Creio que o modo como lidamos com o medo seria o que une ou separa risos e lágrimas. Talvez nos disfarcemos, ou talvez apenas escrevamos e confiantes prosseguimos dando apenas tempo ao tempo, crendo que ele resolverá tudo. Porém, o tempo não cura, ou salva, tudo ou todos. Dar tempo a uma ferida pode significar cura, mas se ela não receber nenhuma atenção pode significar morte.

A menção de Elodia sobre o ver e o não ver, sobre o ser cego, impeliu novamente Pierrot para Alighieri, o fazendo rememorar o momento em que Virgílio e o Poeta, tendo descido já ao Sétimo Círculo, onde fluiria o pavoroso Rio Flegetonte. Este seria o destino dos violentos, fosse contra seu próximo, a si mesmos, contra Deus, contra a Arte ou a Natureza. Cruzando ambos a Floresta dos Suicidas ouviram sobre Pietro della Vigna. O homem, um influente ministro italiano, fora preso e seus olhos lhe foram tirados a mando do Imperador Frederico II. Pietro se suicidaria mais tarde.

Elodia falava sobre o enganar-se. Estaria sendo Pierrot, ao mesmo tempo, della Vigna e o Imperador? Era ele quem estava impedindo a si mesmo de enxergar?

— Não se engane. Não minta para si mesmo — ela terminou, como se sondando suas introspecções. O carro diminuiu a velocidade até finalmente parar. Pierrot não notara, mas estava novamente diante do hotel.

Ele deixou o carro pouco depois dela, talvez um tanto absorto depois de tudo o que ouvira dela. Não foram apenas conselhos. Se os meios justificam os fins os fins podem denunciar os meios. Pierrot poderia simplesmente ler a historia ao contrário e ver que aquelas palavras foram ditas a ela um dia ou ela, através de dura experiência, aprendeu o que tentava lhe ensinar.

Ela passou depressa pelas portas do hotel, escapando logo de seu campo de visão. Poderia estar errado, mas chegou a pensar que a pressa repentina da mulher se devia ao fato de não querer encará-lo. Não por aquilo que ela veria, mas por aquilo que ele veria desta vez. O sentimento de afeição por ela voltou e Pierrot sentiu a empatia lhe inundar o peito e os olhos, mas ele conteve as últimas. Por um instante ele pensou se ela merecia sua confiança; mesmo fazendo parte daquele mundo que ela mesma definira como estéril e poeirento.

Um mundo repleto de lágrimas e poeira. Não há, então, de durar muito, sua mente concluiu antes de ele seguir os passos de Elodia.

Ele tornou a se repreender. Não era este o pensamento que ele gostaria de cultivar no momento. Porém, ele estava lá tentando alcança-lo. Sussurrava. Sem coração para sangrar ou coração para bater. Ele não sofreria pelas decisões de Pierrot, então. No entanto, o fato de tal pensamento existir não significava que deveria ser ignorado. Era necessário estar atento ou o jovem palhaço acabaria preso em suas correntes.

A porta do hotel se abriu. Elodia apareceu. Realmente havia algo de diferente em seu semblante.

— Você não está pensando em congelar aí fora outra vez, está?

Ele se apressou. Teve medo de entrar no estabelecimento e receber olhares inquisidores, mas o salão estava vazio. Apenas duas ou três mesas estavam ocupadas. Pierrot, conduzido por Elodia, logo subiu para o quarto onde se hospedara.

Acendeu a luz e foi capaz de esboçar um sorriso tímido ao ver a caixa de seu violino sobre a cama.

Elodia percebeu isto, tendo entrado também e se colocado ao seu lado.

— Como retribuição por minha ajuda quero que toque para mim — ela exigiu, o levemente ácido humor inicial dela retornando. Pierrot sentiu que gostaria de conviver com aquilo.

— Sua ajuda, então, exige retribuição?

— Não, mas você vai tocar se eu disser que é? Se sim eu te deixo pensar que foi por mero orgulho e vontade de me gabar diante dos outros pelo bem que faço.

Ela foi até as portas duplas que dariam acesso à varanda. Estavam fechadas, claro. Havia neve lá fora. Mesmo assim ela olhou para além do vidro embaçado por um tempo. A noite já caíra completamente.

— Mesmo frente às maiores tragédias a dor é apenas momentânea — ela disse sem se virar. — Se as paredes desabam elas podem ser reerguidas, só seja atento o suficiente para que não caiam sobre você. Lembre-se de não mentir para você. Não conte fábulas ao seu coração, mas se o fizer utilize as fábulas certas ou ao menos conte a história toda. Há pessoas que apenas se atentam em chegar a algum lugar, mas não se preparam para a jornada. Ler um livro e pular para a última página é um descaso contra o herói, não concorda? Até onde sei heróis são construídos e seus passados importam. O que um livro sobre seu passado diria? Ou melhor... o que seu futuro dirá sobre você quem foi? — ela se virou. — E você não terá uma boa resposta se não tiver um passado.

Ele não respondeu de imediato, mas o fez.

— Você insiste nisso, não é?

— Acho que você não terá outra pessoa para insistir se eu não o fizer.

— É. Não vou dizer que está errada...

— Mas...

— Mas pode estar.

Ela assentiu.

— Espero que sim — ela disse. — Realmente espero. Do contrário vai lamentar por não gostar de minha persistência.

Ela voltou a caminhar. Veio na direção dele e em seguida, passando ao seu lado, foi até a porta.

— Tome cuidado com seus passeios em noites geladas — ela disse, abrindo a porta. — Não acho que você vá encontrar outra Elodia por aí tão facilmente.

Ele sorriu, mas o sorriso logo morreu enquanto ela se retirava e puxava a porta para fechá-la.

— Isto é um adeus? — Ele perguntou, se aproximando da porta.

— Sim — foi toda a resposta e para ela, por sua expressão, parecia mais do que suficiente.

Para ele não. Na verdade ele não desejava que ela partisse. Era cedo. Fora tudo rápido demais, mas ele não esperava que ela se fosse. Ao menos não tão depressa.

— Muito obrigado por tudo o que fez por mim — Pierrot disse. — Digo isto, mas minhas palavras não podem expressar minha gratidão.

Do lado de fora ela sorriu, seus olhos verdes quase brilhando.

— Me agradeça fazendo meus cuidados terem valido a pena — ela disse apenas, seus olhos assumindo um brilho que mesclava diversão e cobrança. Pierrot pensou que ela sorriria na sequência, como fizera outras vezes até o momento. Isso não aconteceu.

Elodia se foi de diante de sua porta, deixando-o com esta aberta. Foi doloroso como tão subitamente se sentiu sozinho outra vez.

Pierrot trancou a porta.

Sentou-se à cama, sua mala ao lado. O violino jazia lá dentro, mas ele não quis tocá-lo. Ele acabou apenas se acomodando ao seu lado e sentindo o fluxo de seus pensamentos retornar ao normal. Os bons. Os ruins e os muito ruins. Desta vez, no entanto, ele agiu diferente quanto aos ruins. Eles estavam lá. Ele não quis se esconder deles, entretanto.

Eles sempre estariam lá. Tentando alcança-lo. Tentando seduzi-lo.

*

Pierrot adormecera, mas seu sono revelou-se mais pesado do que esperaria depois de dias repousando. Dias em hospitais, entretanto, não era tão pouco cansativos quando se poderia dizer.

Alguma claridade invadia sua janela quando acordou. A lembrança de Elodia parada ali na noite anterior o assombrou quase de imediato. Ele não sabia que nome dar a este sentimento. Kális o assombrava tanto quanto a segunda, mas ele estaria mentindo se dissesse que se lembrou dela mais do que duas ou três vezes enquanto na presença da mulher batizada em nome de deuses.

Ou em nome do amor...

Se colocou de pé, automaticamente se espreguiçando após o tempo deitado em uma posição inadequada, levando em conta que não intentara dormir quando se deitou.

Seus olhos acabaram se movendo para a porta. Elodia outra vez lhe assaltando os pensamentos. Tentando evita-los apenas baixou o olhar para encontrar um pedaço de papel que, com melhor exame, ele concluiu ser um envelope. 

Fora até ele sem hesitar. Mais próximo ele viu se tratarem de dois envelopes. Tomando-os viu que havia números. O número “1” em um e um “2” no envelope restante. A escrita era ordinal. Então, concluiu, deveria abri-los na ordem. Abrindo o primeiro, retirou do aconchegante interior um papel dobrado. Era pequeno. Não seria mais do que um simples recado. Ao abrir viu-se diante de uma grafia misteriosa, que ficava entre a beleza de letras cursivas e traços feitos às pressas. Ele leu:

O dia surge outra vez

E você pode ouvir as asas do tempo.

Baixe suas espadas;

Ouça o sussurro nos ventos.

O tempo muda tudo

Mas é necessário saber esperar.

Enquanto isso não desista de sua alma.

Não deixe que seja tarde demais.

Elodia

Ele havia suspeitado.

O outro envelope era um pouco maior e seu conteúdo era outro. Havia mais que uma folha de papel ali. Três facilmente. As desdobrou. Eram quatro. Frentes e versos estranhamente em branco. Ele não sabia do que se tratava exatamente, o que fez com ele tornasse às palavras anteriores de Elodia. Todas as coisas ditas por ela e principalmente aquelas presentes no papel do primeiro envelope.

“Não deixe que seja tarde demais...”

Ali deixou que sua mente pairasse outra vez ao longo de sua trajetória na opaca existência. Quem era ele? O que era ele? Havia um propósito? Assim, no ir e vir dos pensamentos figuras, formas, imagens e locações tomaram sua mente. A Galeria que achava dentro de si se distorcera e ele vislumbrou um cenário jamais visto. Todavia, conforme refletia, ele pareceu sempre estar lá.

O vazio daquelas folhas perante ele pareceu desafiá-lo. Mais do que isso, pareceu pedir a ele que fosse preenchido.

Pierrot olhou a sua volta para, pela primeira vez, notar que havia uma pequena mesa à cabeceira da cama, um abajur sobre esta. Lhe serviria. Do interior do case do violino, junto ao seu caderno de anotações, ele retirou sua caneta. Tirou a pequena mesa de seu costumeiro local, trazendo-a mais próxima do leito sobre o qual decidira por se sentar. Em um último instante fitou as luzes que iluminavam o quarto. Levantou-se para apaga-las e tornando à cama deixou que a luz discreta do abajur banhasse o papel abaixo do seu olhar. Era o suficiente.

Deitara-se na cama fitando o teto enquanto deixava que pensamentos tomassem forma. Buscando concentrar-se fechou os olhos. Quando os abriu o fez quase sobressaltado, tendo percebido que cerca de uma hora havia se passado. Havia adormecido, tendo sido tragado para um sonho.

Um estranho e enigmático sonho.

Sentou-se outra vez, agora decidido a não deixar aquelas folhas em branco.

Respirou audivelmente, fechando os olhos para poder visualizar tudo aquilo que lhe preenchia os pensamentos após tão única experiência nos domínios de Morpheus; as figuras que por lá perambulavam através da paisagem lá composta. Suspirou enquanto abria os olhos, baixando-os sobre as páginas que por seus tormentos e sentimentos pediam.

Sua mão se moveu, escrevendo na parte superior da primeira página uma palavra apenas, mas que para ele era o cerne do seu sonho.

Chacal

Felipe R.R. Porto

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