segunda-feira, 4 de março de 2024

Inferno - Capítulo 3: Envolta em Resplendor


A próxima lembrança de Pierrot foi novamente preenchida com escuridão, mas uma que não se prolongou, pois quase que automaticamente houve luz e as sombras se recolheram para esconderijos que ele não podia ver. Estava claro, mas não claro como antes. Era o mesmo quarto, mas apenas uma luz tênue permanecia. O suficiente para que o paciente ficasse confortável e o suficiente para que este pudesse, de quando em quando, ser observado.

Estava sozinho. O estranho sonho ainda lhe pairava na mente como nenhum outro jamais o fizera. Ainda conseguia ver a estranha figura alada. Seus olhos nos dele enquanto ela o deitava e chorava por isso... O que significava? Aliás, sonhos significam algo que não aquilo existente no subconsciente?

Os pensamentos de Pierrot foram interrompidos quando a porta do quarto foi aberta e uma mulher entrava, mas parou assim que viu que ele havia acordado. Era uma enfermeira, a qual logo refez seus movimentos, se retirando, mas deixando a porta entreaberta indicando que logo retornaria e provavelmente acompanhada, supôs ele.

Seu corpo doía, provavelmente pelo repouso excessivo, que levara seus membros e músculos a relaxarem. Soube também que havia descansado tempo o suficiente, pois não havia nele nada que pudesse fazer com o sono o acometesse outra vez.

A porta, então, se abriu completamente e Pierrot se viu prestes a falar com a enfermeira, mas não pode prosseguir com isso. Não era ela quem retornava.

Ele se calou e mesmo aquilo que estivera prestes a falar fora varrido para os mais profundos recônditos de sua mente. Um lugar tão profundo que ele ainda veria dias se passando até que se lembrasse...

A figura recém-chegada tornou a fechar a porta, em seguida deslizando até seu leito. Vestia uma camiseta branca e uma saia preta que lhe conferia uma postura extremamente madura, ainda que fosse aparentemente jovem. A camiseta possuía rendas nos punhos das mangas e no colarinho. Os cabelos longos eram como um manto negro contornando o rosto onde os olhos eram tal qual claras esmeraldas perfeitamente trabalhadas. Pierrot teria duvidado da existência de um ser tão belo se não o visse, mas ele via. O rosto e a vestes, em sua brancura, eram uma espécie de sol naquele quarto. Se houvesse uma tempestade esta seria expulsa pela mera presença de mulher tão radiante.

Se esta tempestade fosse composta por suas palavras; se as palavras fossem as nuvens tempestuosas... elas haviam se ido. Só havia o silêncio. A contemplação.

— Eu não sou um fantasma — falou, então, a mulher, se sentando em uma poltrona ao seu lado. A voz era firme, mas dura, quase langue. — E também não sou uma enfermeira ou algo assim. Isso se você, como eu, não gostar de ambientes hospitalares...

— Não. Eu... — Pierrot apenas começou, oscilando entre dar uma desculpa e não ter o que dizer.

— Foi apenas uma piada, Pierrot — disse ela, sorrindo. Um sorriso que fez seu peito queimar. — Você provavelmente entendeu isso, mas por alguma razão ficou nervoso. Não fique. E também, daqui em diante, trate de evitar ficar tempo demais na neve sem estar devidamente agasalhado.

O ator e músico circense se sentiu ridículo naquele instante, diante daquelas palavras. E um idiota.

— Você vai receber alta hoje — ela avisou. — Vou te deixar no hotel onde se hospedou dois dias atrás...

        — Dois dias?

— Teria sido mais tempo se o socorro não tivesse vindo a tempo.

Seus olhos tentaram se encontrar com os dela, mas se desviaram em seguida. Pouco depois, ele arriscou enfrenta-la. Enfrentar aquele olhar apenas para perceber que ele parecia tão perspicaz quanto qualquer outro. Era como se ela fosse capaz de sondar as profundezas de sua mente, do seu coração. De forma semelhante ele foi tragado para o mar esverdeado que eram aqueles olhos.

Por um momento se viu navegando naquelas ondas, atraído por tão perfeito semblante. Se entregara sem nenhuma resiliência, sucumbindo àquela estranha. Sem sequer saber o seu nome.

— Suas roupas estão no canto — ela indicou com os olhos, a voz solene. — Se vista e logo volto para te buscar.

Ela se levantou ele se viu cheio de admiração, mas logo se repreendendo.

— Muito obrigado por tudo o que fez, mas não precisa fazer tanto.

— Não se preocupe. Vou para o hotel também. Não será um incômodo.

Aquilo o fez se calar e ele se viu entristecido por isso.

— Eu não vou embora hoje — ela disse e sorriu, se divertindo. — Não fique tão triste assim.

Está tão óbvio assim? Ele se perguntou, tendo sido tomado por uma vergonha súbita, mas que feneceu levemente quando a mulher saiu. Óbvio ou não era a verdade. Ele não gostava da sensação, da possibilidade de se sentir atraído por alguém que mal conhecia. Alguém que sem esforço o fascinou, o envolveu. Tal qual a mulher em seus sonhos ela, como se tivesse asas, as abrira sobre ele e o mero estar ali era como um poderoso, embora doce, imã atraindo uma pequena lasca de ferro.

Pierrot se levantou vacilando um pouco. Estar deitado um longo tempo talvez fizera com que suas pernas se esquecessem um pouco de como era andar. Logo chegou ao lugar apontado vendo que não eram suas roupas que estavam ali, aquelas que ele vestira na noite do ocorrido. A mulher provavelmente fora ao hotel e tratara de pegar sua mala. Por instinto ele procurou seu violino, logo percebendo o costume que se instalara nele.

Se passou mais de uma hora até que houvesse batidas na porta. Pierrot autorizou a entrada. Era a mulher de antes, agora munida de um casaco visto o frio que certamente fazia lá fora. Vê-la era deslumbrante, algo capaz de acender as velas das escuras Galerias do seu âmago. Seu peito ardia e seu coração galopava diante da perfeita imagem. Percebeu que havia segurado a respiração. Desde quando havia se tornado tão suscetível à beleza de uma mulher? Desejara intimamente sucumbir a ela, entregar-se, mas ele nada sabia. Não a conhecia. Que tolo seria se tão já lhe acabasse desnudando a alma aos domínios da desconhecida. Isto não seria sequer uma tragédia. Seria idiotice. Não?

Ainda que ela o atraísse, lhe soava inalcançável estar com alguém como ela. “Isso sim é algo que poderia ser chamado de sonho”, ele pensou, enquanto tomava sua mala e se aproximava dela, seu coração acelerando com esse simples ato.

— Está pronto, suponho — disse ela. Ele apenas fez que sim. Ela assentiu em resposta enquanto se virava e se dirigia à porta.

— Eu ainda não sei seu nome — ele disse quando já andavam pelos corredores com o típico cheiro hospitalar.

— Elodia — ela disse simplesmente.

— Me desculpe?

— Me chamo Elodia, Pierrot.

Ele franziu o cenho.

— Elodia... como a deusa Elodia?

Ela olhou para ele.

— Sim, como a deusa — ela disse quando passavam pelas portas de saída, voltando ao mundo vestido do frio e alvo manto de neve de antes, mas estava claramente mais espesso. Elodia lançou sobre si o casaco que trouxera.

Ela os conduziu a um carro pouco a frente, um sedan negro, facilmente se destacando na paisagem – qual chamou a atenção do jovem. Não era o hospital da sua cidade. Olhou ao redor para ter certeza disso, vendo os prédios se elevarem cada vez mais em todas as direções que pudesse observar.

Elodia, ou quem quer que fosse, o trouxera para um hospital que não era o de sua cidade. Aquilo o fez pensar que havia anos não ia até lá. Porém, não lamentava por isso. Pelo contrário.

A esbelta mulher se dirigiu à porta do motorista e Pierrot à do carona. Não conseguiu evitar um sorriso sarcástico, apesar de tudo o que se passara.

— O que foi? — Elodia perguntou, certamente tendo notado o sorriso. Um sorriso levemente descontraído lhe brotando nos lábios, o calor aquecendo o peito de Pierrot em seguida.

— Nada de mais — ele disse. — Mas não é todo dia que tenho a oportunidade de pegar carona com a Deusa do Amor.

Ela balançou a cabeça diante da piada que ele mesmo percebeu sendo péssima. Aliás, ele sabia que era. Porém, não acho que teria mal em responder a pergunta.

— Espero que seja uma boa experiência — ela disse quando já estavam dentro do carro, os cintos sendo postos.

— Bom, não vejo razão para não ser...

— Talvez pelo fato de você não ter mencionado a segunda parte do meu título — ela se divertia, adquirindo um tom soturno enquanto concluía: — Deusa do Amor... e da Morte.

Pierrot, ainda que alguns que fossem ver a situação como macabra, sorriu com a conclusão.

Ela deu a partida e logo estavam cruzando a cidade, pouco depois a deixando e se lançando em uma rodovia que os levaria de volta. “Elodia”, ele pensou no nome. Sentiu vontade de dizê-lo em voz alta como se para saboreá-lo, mas não. Não podia. Não deveria se dar esta oportunidade, pois temia saber onde ela o levaria. Deveria deixar as coisas como estavam antes de ela chegar: ela envolta em seu resplendor e em gloriosa aura e ele, esquecido e irreconhecível, na escuridão de sua existência.

Felipe R.R. Porto

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