quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Medo - Capítulo 1: Alma Em Perigo


Havia pouco movimento no circo naquele dia. 

Um dia frio e isto certamente afugentava as pessoas. Ele entendia. Levantou os olhos contra o céu quase rochoso daquela tarde que avançava. As nuvens eram cinzentas e mesmo assustadoras em momentos que estas fossem observadas em demasia. Era como se retribuíssem os olhares, mas seus próprios olhares mostrariam o quanto estavam descontentes em serem observadas. 

Ele baixou os olhos, não porque as temia, mas porque havia mais o que fazer. 

No centro do parque então ele, o Arlequim, fazia malabarismos enquanto pessoas passavam por ele lhe lançando olhares. Ele sorria ante eles, mas eram olhares que não viam realmente. Olhares que, no íntimo, eram cegos... ou, ao menos, cegos para as coisas importantes. Ou talvez ele enxergasse demais, vendo o que não deveria ver. Talvez vendo o que não estava realmente lá. “Mas talvez estivesse...” 

Era em momentos assim que ele se sentia em estranhos apuros. Momentos onde ele buscava compreender o que estava se passando – dentro e fora de si. Ele sentia que não falhava em sua busca, mas era frustrante o que ele sempre acabava por encontrar. Já havia tentado não ver, mas isso jamais seria ele. Era necessário ver. Era necessário sentir. Ainda que outros jamais vissem e muito menos sentissem. 

Era em momentos assim onde ele sofria, permitindo que sua mente vagasse pelas trevas destes pensamentos, trevas estas compostas de toda a sombra, de todo o vazio, que ele parecia encontrar em tantos daqueles olhares que por ele passavam. E quão espessas trevas eram! Sentia que vagava por elas com uma tocha apenas e nada mais, sua face iluminada pelas chamas bruxuleantes e mesmo assim permanecendo ignorado. 

Como as pessoas o veriam? Como o sentiriam? Já chegara a imaginar o mundo à sua volta como um vasto mar, no qual ele se achava à deriva após seu naufrágio. Volta e meia um místico albatroz o sobrevoaria, mas irônica e desafortunadamente o ignorando devido, quiçá, à altura excessiva. Distante demais. Haveria, no embalo das ondas, outros como ele. Outras almas em perigo, mas nada de serem resgatadas. Não há navios à vista. 

Havia, entretanto, um ponto misterioso na metáfora de Arlequim: não há navios a vista para os que estão à deriva, mas os navios sabem deles. Sabem dos náufragos. Apenas não se importam com os gritos desesperados das almas, ainda que destroços de uma embarcação flutuem de forma mórbida e delatora sobre ás águas. Não querem realmente ver que há alguém lá e este alguém não está seguro, um alguém que está morrendo... lentamente. Existem os pedidos de ajuda, mas não há a ajuda. Não há um navio sequer vindo pelos que sofrem... 

Percebeu que seu sorriso desaparecera. Sorria novamente, mas somente para si, a melancolia revolvendo em seu interior. 

Gostava do que fazia, mas seria ele superficial demais ou profundo demais? Ou seriam as pessoas superficiais demais e ele profundo demais? No âmago do seu ser ele possuía objetivos, mas era como se suas ações àquelas mesmas pessoas que passavam por ele fossem sementes lançadas em solo infértil. Tantas vezes já havia se entristecido por crer que aquelas foram horas perdidas... dias perdidos. Pois, viria um dia a morte e o que ele havia feito? Viria a morte e o que estas pessoas teriam conseguido? Talvez ele apenas “sentisse” demais e isso estivesse, de alguma forma, o adoecendo. 

No entanto, ele prosseguia vivendo. Ele ainda se esforçava para viver, ainda que sentisse que verdadeiramente mentia em tantos momentos. Amava atuar, mas havia dias que sorria e fazia malabarismos com seu coração sangrando. Havia dias quando atuava onde ele mesmo – não o palhaço, não o Arlequim – sentia que definhava... sentia que se lhe tirassem a maquiagem não haveria mais ninguém. Se ele não fosse o malabarista, o palhaço, ele não seria mais ninguém. “Seria uma mentira”, pensava. 

Era fato que não conhecia todas aquelas pessoas, mas tinha amor por elas e o que fazia, percebia, era mais por elas do que por ele. Era seu amor por elas uma ilusão que devesse descartar em vista de tudo o que sentia? Deveria mesmo estar fazendo aquilo que fazia? Era provável que tantas delas seguissem imutáveis, incuráveis, mas ele não permitiria que elas mudassem aquilo que havia nele. Não permitiria que a frustração tomasse conta de quem ele era. Não, ele não negaria que várias vezes já se vira indignado, mesmo irado com elas por esperar delas coisas que elas acabaram não fazendo. Provavelmente era isso que o feria: o esperar demais de meros humanos. Como ele. 

Segundos se passaram até que se percebesse parado com as quatro típicas bolinhas nas mãos - duas na direita e duas na esquerda. Olhava para o nada, os olhos ardendo de leve. Marejavam? Quando ele havia parado? 

Baixou os olhos, ainda um tanto absorto, para encontrar os olhos de uma criança, uma garotinha que ele sabia ter oito anos. Automaticamente sorriu para ela e voltou a fazer os malabarismos, abaixando-se perto da pequenina que gargalhou à sua aproximação, divertindo-se com seu número. As notas do seu riso eram doces e verdadeiras. 

Sim, ele amava o que fazia e sabia que o fazia bem. Talvez aquela criança não se perguntasse quem havia por trás do palhaço, mas a alegria genuína expressa era o que ele esperava de alguém como ela. Esperar dos mais velhos é que era doloroso. “Oro para que os anos não te façam perder isso”, ele gostaria de ter dito a ela. Parte dele realmente alimentava tais esperanças. A outra parte duvidava delas. 

Assim era vista a vida: uma misteriosa valsa iluminada pelo Tempo, mas comumente tendo como par a Vaidade. Geralmente, em tudo há Vaidade. 

Porém, aqui, Arlequim notava que havia o mal entendimento: a Vaidade havia se tornado um mal entre todos. Tão belos... e ainda assim tão horríveis. Arlequim sabia disso e se assombrava, pois se tratavam de apetitosas garrafas aos olhos, mas ao tentar se saciar nestas mesmas garrafas apenas aumenta-se a sede. Belos aos olhos, vazios ao paladar. Parecem suaves como um doce e cristalino lago, mas tem as almas tão secas, envelhecidas e maltratadas. Nada mais que um deserto em sua extrema sequidão. 

“São todos velas frias e já apagadas”, ele concluía. Dentro de si seu coração ardia. Não era, talvez ainda, uma chama, mas saber que havia calor já o deixava levemente reconfortado. Levemente. 

Velas frias e apagadas. Todos já nascem dessa forma. Há o choro inicial, o grito dos infantes, que leva o homem a crer que há vida, há chama. Mas o que é vida? É quando se sente o coração bater e ossos e músculos reagindo? Ou quando se abandona a sequidão da Vaidade e se passa a cuidar da alma? Do que os olhos são incapazes de ver...? 

Arlequim acreditava na segunda. 

Todo eram, ou se tornariam, cinzas, frequentemente consumidos pelas urgências da Vaidade. Todos insignificantes (e ainda assim alguns sendo arrogantes) grãos de poeira. 

E além de cinzas e poeira também muitos são cegos. Alguns cegos demais pela raiva, outros cegos demais pela dor. Há quem seja surdo devido ao amor, o que pode até vir a ser uma virtude; e há aqueles que nada dizem... pois o medo os calou. São mudos. 

Ele via em si um pouco de tudo isso e quão decepcionante isto era. Quantas foram as vezes em que houveram lágrimas quando ele não conseguiu mais se segurar? 

Ele, assim, permanecia à deriva. Um dos náufragos, sendo ele também uma alma em perigo. Ele tentara salvar a tantos, mas ainda não haviam tentado salvá-lo. Talvez ele não precisasse ser salvo... palhaços são tão felizes, então do que ele poderia ser salvo? De si próprio, seria a reposta. 

Ninguém conhecia sua voz, pois não achavam que seria importante conhecê-la, e por isso não havia quem o entendesse, pois também não havia alguém como ele. Só havia ele. 

Ninguém sabia de seus verdadeiros traços, pois não houve quem desejasse vê-los. 

Ninguém poderia falar a ele nenhuma frase. Tão mais loje estava uma doce, sincera e tão desejada expressão de afeto.

Havia lembranças em sua mente agora, mas ele buscava as afastar. Não as desejava. Se possível, gostaria que elas morressem antes que ele próprio...

“Os quadros mais belos já pintados são uma distração”, ele concluiu novamente consigo mesmo. “Uma anestesia. Já a realidade é desprovida de beleza. Terrível. Deformada... quem ousaria pintá-la?” 

Havia feito novamente, percebeu pouco depois. Havia se rendido outra vez à já íntima torrente de pensamentos...

Estava ainda agachado no meio das pessoas que iam e vinham. As  bolas coloridas em suas mãos. Os olhos agora fitavam o chão. Levantou o olhar apenas para constatar o óbvio: 

Não havia mais criança. Ela havia partido.

Felipe R.R. Porto