terça-feira, 18 de abril de 2023

Solidão - Capítulo 3 : Solidão

O sol havia brilhado aquela manhã, mas não fora por muito tempo. No dia anterior uma tempestade ameaçara castigar as redondezas. Somente ameaçara, pois a noite veio, adentrou-se a madrugada e rompeu a alvorada sem que gota alguma tocasse os trailers, barracas, tendas ou jaulas do local onde o circo estivera nas últimas semanas. O céu, mais do que no dia anterior, trazia em suas nuvens uma tonalidade chumbo. Frias nuvens. Obviamente também frio era o vento que soprava.

Talvez realmente chovesse naquele dia.

Ao longe, mais a Leste, uma grande caravana se afastava. Ali, onde estiveram todas as armações e estruturas, lonas e demais quinquilharias do circo, haviam permanecido apenas os sinais de que este um dia estivera ali: duas estacas, Arlequim notara, foram esquecidas ainda fincadas solitariamente no solo e junto a estas um considerável retalho da lona de uma das tendas, onde grandes estrelas douradas foram ilustradas contra o azul escuro - talvez, às pressas, creram ter removido todas as mencionadas estacas, mas viram o erro ao puxarem a lona e esta se partir. Era uma possibilidade.

Uma pandeirola estava sobre o gramado - alguém certamente sentiria falta desta. Ao redor via-se grandes porções, geralmente circulares, da grama e suas minúsculas ramas ainda assentadas, inclinadas, tendo algumas adquirido uma coloração menos viva. Eram estas últimas, certamente, as maiores evidências de que um circo estivera por ali. Sobre elas estiveram estruturas de tendas ou arquibancadas, jaulas, caixas e caixotes, carrosséis, trailers e tantos outros objetos e estruturas. Arlequim estava em uma de forma circular, onde já se apresentara a grupos menores de espectadores em situações e números mais intimistas devido à proximidade com que o assistiram.

Aquilo tudo havia passado. Seriam apenas marcas em sua memória, assim como aquelas sobre o gramado. No entanto, a grama, em um ano ou dois, viria a “se esquecer” do circo e de tudo aquilo que este trouxera consigo.

Além de duas estacas, um retalho de lona, uma pandeirola e marcas sobre o gramado, Arlequim também ficava para trás. Havia escolhido assim. Havia escolhido, mas seria mentira dizer que não era estranho, mesmo levemente angustiante, ver a caravana se afastar, indo para um lugar para o qual ele não iria.

Aquele era o fim.

— Eu escrevo minha história — ele disse para si.

Havia algo de aterrador no “escrever a própria história”, havia a responsabilidade do “escritor”. Apenas teria de saber lidar com as consequências de sua “corajosa escrita”. Ninguém era capaz de entendê-lo melhor que ele mesmo, então acreditava ter feito a escolha certa no momento oportuno.

Acreditava mesmo? Ele suspirou diante da questão levantada pelas vozes que ainda ouvia, nada mais do que ecos da saudade precoce, ou da saudade de como as coisas já haviam sido mais simples.

A caravana, ele então vê, desaparece no horizonte. A solidão que paira é esmagadora, desoladora. Ela, diferente de outras vezes, lhe surge agressiva. Ele sente que ela o esbofeteia a face. Ele, no entanto, não foge dela. Já eram conhecidos, amigos, há tempo demais. Bons amigos discutem, se ferem, mas... nunca abandonam um ao outro. Ela parecia incapaz de abandoná-lo.

Ele, se esforçando, se levanta. Tinha de ir.

Uma memória lhe toma a mente, mas ele reluta em deixar que ela tome plena forma. Ela, porém, esta lá. Novamente ele se vê confuso, como se tivesse sido estilhaçado, feito em milhares de pequenos pedaços. Novamente a insegurança o toma e o abate. É como se cada um dos pequenos pedaços decidisse qual o caminho deveria seguir. Porém, por razões diferentes, eles tomam direções diferentes. Ir-se-iam se realmente pudessem. Ir-se-iam... como outros já se foram. “Eu não segurei suas mãos firme o bastante”, ele apenas pensa.

Ele, sucumbindo, senta-se outra vez. Sozinho. Sozinho ele viveu seus últimos anos; naqueles antes deste ele eram jovem demais para se importar com a solidão. Como crianças, em dados momentos, o ser humano soa tão fácil de agradar. Entretanto, isso, com o tempo, parece passar – a não ser que as prioridades sejam outras, que as questões, objetivos e sonhos sejam outros. Sozinho ele buscou seus sonhos, quais descobriu serem falsos. Ele procurou pela glória do amor, mas no fim encontrou apenas solidão.

Lembrou-se do estranho sonho que tivera na última noite. O momento em que ele retornava para seu assento e o encontrava já ocupado. Talvez, ele então pensou, que estivesse procurando sonhos que, na verdade, não pertenciam a ele. “Ou sonhos que não caberiam a mim sonhar”, concluiu ele sentindo-se outra vez imerso, sob o peso da ridiculamente esmagadora solidão. 

Felipe R.R. Porto

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