quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Satura - Capítulo 6: Chama Ao Vento

Começara a realmente nevar. A luz em alguns dos postes piscava.

Pierrot ainda ouvia o estranho silêncio. Tão incomodo e terrível silêncio. Quis saber até quando haveria de se prolongar.

Ele havia parado um tanto longe do hotel, de frente a uma loja com amplas vitrines, mas a escuridão no interior do estabelecimento fazia com que a grande peça de vidro se tornasse um imenso espelho. E ali estava. Parado... naquele grotesco silencio, mas inconformado com ele.

Uma voz solitária no vasto espaço silencioso.

Uma vela na vasta escuridão. Lembrou-se, fatalmente, da vela vista antes de deixarem a igreja instantes atrás – ele, inclusive, se perguntou a quanto tempo estivera parado ali, sendo castigado pelo clima em vias de se intensificar.

O ministro, sua mente o fez continuar a rememorar, havia fechado as portas do templo. A vela, assim, estaria a salvo. Não haveria mais esforço para resistir ao soprar do vento, não teria mais de lutar para que seu calor e luminosidade se mantivessem.

Pierrot não estava na mesma situação. Havia o vento e ele era a vela exposta. Kális, em sua mente, em seu coração, por tanto tempo sua luz pequena e preciosa também estava lá. Também uma vela, mas ela se apagava. A vela dela não suportaria aqueles ventos. Ela se apagaria...

O jovem decide se mover, mas quando o faz apenas se vê na vitrine. O estranho espelho formado pelo invisível e pela escuridão visível. Vê seu rosto jovem, mas cansado. Jovem, mas preocupado. Ele força um sorriso, uma força que o consome ligeiramente. Ele suspira fartamente, seu hálito quente embaçando a vitrine, onde seu rosto se torna apenas um borrão pouco a pouco desaparecendo à medida que ele dá passos atrás, virando-se, não tendo intenção de encarar-se outra vez.

Lá está o hotel. Ali estava Pierrot. Estático. Silencioso. Mudo. Uma figura no inverno e então há um chamado...

Por um momento ele se vê desperto, olhando à sua volta em busca da origem do chamado, mas seus olhos não encontram nada ainda que esperassem encontrar alguém, mas não houve sucesso. Ele esperou e esperou, ainda procurando, mas logo houve o silêncio novamente e, então, a solidão. Havia a esperança, mas há a sobriedade e, por fim, a renuncia a qualquer coisa que tivesse ouvido. Estava sozinho, tragado para uma funesta monotonia estática.

Não houve um segundo chamado. O vento, no entanto, soprou mais forte, um silvar choroso que perdeu-se penumbra adentro. Pierrot, que havia recuado diante da imagem do espelho agora se vira novamente diante desta, impelido pela reação mediante o vento repentino, obrigando-se a procurar abrigo.

Outra vez ele respira diante de si mesmo, sua imagem sendo outra vez embaçada. Minutos se passaram quando ele percebeu o vento sossegar, embora não cessar, e uma neblina chegar sorrateira pelas ruas; um fantasma translucido e rastejante. Mais um dentre os tantos fantasmas vistos naquela noite salpicada de cadentes flocos alvos, os quais se empilhariam a fim de erigir diversos monumentos disformes, anunciando e firmando o reinado do inverno pelos próximos meses.

Um sobressalto lhe toma quando ele vê, por cima do ombro, no reflexo, uma silhueta na neblina. Ele se volta, girando rapidamente nos calcanhares, a fim de escrutar a cortina esbranquiçada diante dele. E não vê nada. Um arrepio lhe percorre o corpo, tão vivido como se a fria brisa lhe tocasse o corpo nu. Não pôde deixar de sentir que alguém o observava. Mas talvez estivesse errado. Talvez fosse um fantasma. Outro. Seria apenas mais um visto dentro da já fantasmagórica neblina.

Havia nele o crescente anseio de que a tempestade realmente viesse avassaladora. Mas ela, por fim, não viera. Não ainda. Os ventos sopraram insistentes, mas apenas para trazer a neblina... e isso foi tudo.

Ali, havia apenas ele cercado de neve. Ele, uma vela que poderia ter sua chama, seu calor e brilho tomados pela neve que cobria tudo ao redor. Sua chama, em seu coração outrora tão aquecido, ameaçava falhar... Fraca, tão fraca.

Aqui, então, ela expira.

Aqui, então, o corpo cansado falha, se entregando ao frio. Derrotado pelo inverno, pelo silêncio. Pelo medo e pela solidão que tanto o açoitaram, o castigaram até então.

"A sátira perfeita", ele pensou antes de colapsar na brancura da paisagem.

Os olhos de Pierrot se abrem. Sua realidade, ou seu sonho acordado, não havia chego ao fim ao que parecia e seu corpo ainda desejava a vida – seu desejo de continuar viviam. Ainda que mais em sua carne e ossos que em sua alma.

Imóvel ele permanece sobre seu leito de gelo. Sentia as juntas começarem a doer, mas não se movia.

Era como se ainda estivesse esperando algo...

... talvez esperando o sol nascer.

Mas não há um sol, pois ainda é noite, embora ele não soubesse que horas eram. Contudo, há sim algo que brilha, reluz diante de seus olhos exaustos. Mãos tocam as suas. Mãos quentes tocam a suas tão frias e ele vê um rosto diante de si.

Não era o sol, mas irradiava.

A mulher sorriu, provavelmente diante da reação de alguém que talvez pudesse estar morto. Ela sorriu. Não um sorriso como o de Kális, mas que ainda assim pareceu cavar a carne de Pierrot como havia anos não acontecia... como ele achava que jamais fosse acontecer. Ou não tão logo.

Se a vela havia se apagado... agora tornava a estar acesa. Ou se esforçava para estar.

— Me chamo Elodia — disse ela sorrindo e Pierrot simplesmente se viu desejando que aquele sorriso, como se fosse divino, durasse para todo o sempre.

Que jamais se fosse.

Felipe R.R. Porto

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Satura - Capitulo 5: O Silêncio

Deixara a igreja pouco depois de Kális ter retornado. Uma vela bruxuleava ao vento quando cruzavam a porta. A mesma parecia, em momentos, que se apagaria, mas persistia.

A praça já se esvaziava e mesmo as ruas quais a acessavam tinham poucas pessoas. Pierrot não tinha um relógio consigo, mas temeu que ele e Kális houvessem demorado mais do que pensavam.

— Agora é hora de nos despedirmos — ela disse a ele quando saltaram do último degrau da escadaria, parando um de frente para o outro. Pierrot pode ver a porta da igreja se fechando. Aquilo lhe ofereceu estranho alívio, pois a forma como a vela quase se apagava o havia incomodado. Não queria que ela se apagasse. — Espero não demorar tanto para voltar a te ver.

Ele sorriu.

Ela sorriu de volta, um sorriso deslumbrante, qual ele sabia ser incapaz, ao menos no momento, de devolver a altura. Por sorte ela sabia disso.

— Também espero por isso.

— Cuide do “Pierrot” no interior das suas Galerias...

— “Cuidar” não é bem o que eu gostaria de fazer com ele.

— Mas pode ser o que precisa fazer — ela disse, se aproximando e o abraçando. Ele sentiu seu corpo se arrepiando e não foi de alegria. Dentro de si aquilo pareceu... doer? Ainda assim ele a envolveu em retribuição.

Aquilo fora o certo a se fazer, pois sentiu o mal estar esvair-se aos poucos. Não era sobre não gostar dela, ou sobre evita-la. Era sobre evitar o ser humano. Ele e ele apenas sabia o quanto evitaria a si mesmo se fosse possível fazê-lo. Sim, havia formas de inibir desejos, impulsos ou pensamentos, mas não era saudável. Poderia apenas prejudicar-se ainda mais.

— Se cuide também — disse ele. — Cuidado com seu coração. Suas perguntas lá dentro não me soaram apenas como perguntas aleatórias.

Eles se afastaram, seus olhares se cruzando. O dela estava levemente marejado. Pierrot se aproximou dela e segurou seu rosto – pálido rosto – entre suas mãos, puxando-o leve e carinhosamente para perto de si. De forma leve e carinhosa foi que ele lhe beijou a fria testa. Demoradamente.

Se afastaram outra vez.

— Ouvi uma vez que as pessoas frias tem os melhores carinhos — ela disse.

— Me considera frio?

Ela deu de ombros, ainda chorosa.

— Você não é “quente” como a maioria.

— Isto é um problema — lamentou ele, mas em seguida notou que ela balançava a cabeça.

— Não — ela disse. — Em você não.

Assim, sendo estas suas últimas palavras, ela começou a se afastar. Longe o bastante ela se virou, lhe dando as costas enquanto seguia para um grupo de pessoas. Sua família. Pierrot não os vira ali.

Ela se fora e, por um momento, ele se viu sentindo falta de que ela o tivesse tomado pela mão e o levasse consigo, como fizera outras vezes naquela noite.

Todos se foram e ele estava, outra vez, sozinho na praça. Apenas o vento lamentava, falando de suas tristezas às arvores que choravam emitindo o som das folhagens. Não havia mais canto na igreja.

Silêncio. Havia outros sons, mas, repentinamente, tudo pareceu silêncio para o jovem.

Ele não demorou em deixar a praça, qual agora usava um manto mais espeço de neve, o fazendo repreender-se por não ter notado o quanto a esta havia coberto da paisagem desde cerca de uma ou duas horas. Estivera realmente tão distraído assim? O manto cobria os telhados ao redor e as ruas viam-se alvas a não ser por onde veículos haviam passado durante aquela noite. Pierrot parou, fitou o céu por alguns segundos e recomeçou sua caminhada, refazendo o caminho que o trouxera até ali. Acima, contrastando fortemente com o branco abaixo, o céu era uma placa negra. Uma nevasca viria naquela noite e não seria fraca.

Passos rápidos logo levaram Pierrot para a rua do hotel onde se hospedara, ainda que tivesse ainda cerca de quinhentos metros a prosseguir até alcançar o mesmo.

Um vento frio soprou, fazendo com que arrepiasse. Cerrou os dentes a fim de que estes não começassem a bater diante da exposição à baixa temperatura. O arrepio o fez lembrar-se do último que lhe acometera, quando fora abraçado por Kális instantes atrás. Ele havia se repreendido quanto à sensação, mas a entendia. A entendia perfeitamente assim como entendia o frio que lhe almejava congelar o viscoso liquido quente que lhe fluía pelas veias. Involuntariamente havia cultivado dentro de si um sentimento de repulsa quanto aos seres humanos. Não por que não amasse as pessoas ou tivesse asco destas, mas por elas não se amarem mais umas às outras e tivessem nojo uma das outras...

...e isto se via cada vez mais. Um requintado ódio que mais e mais fluía pelos corações da humanidade. Uma doença que se espalhava livremente sem algum tipo de fronteira ou barreira, sem limites que a impedissem de prosseguir com o contágio por toda a linhagem – nobre linhagem – dos homens. A igualdade permanece sendo igualdade, mas há uma estranha divisão que separa raças na mesma intensidade em que sexos se diferem.

— Ah — lamentou Pierrot audivelmente, sua voz unindo-se ao frio lamuriar do vento —, repulsa que se revela mais e mais a este mundo...

Era a verdade. Pessoa nenhuma viu. Pessoa nenhuma ouviu. Logo ninguém falará a respeito. Há sangue pelas ruas, mas nada aconteceu.

Ninguém sabe de nada.

O que estava acontecendo? Ouvia-se com frequência do quão evoluído e racional era o ser humano em detrimento das demais formas de vida animadas. Pierrot tinha dúvidas sobre o que era ser racional para a maioria das pessoas. Ele não precisava pensar muito para afirmar, com certeza, que dentro da igreja na qual estivera há pouco haviam pessoas que mesmo tendo unido as mãos em oração diante de Deus não hesitariam em avidamente matar pouco depois. As mesmas mãos que se elevavam suplicantes em orações em favor da paz seriam as primeiras a acorrentar e fazer prisioneiros. As mesmas bocas que se abriam e clamavam por piedade seriam as primeiras a falar de culpa, as primeiras a julgar – não mostrando a misericórdia que tanto buscavam paras si mesmas.

Há quem vá falhar e morrer, assim como há quem vai viver. Há olhos que verão a estas coisas. No entanto, há olhos que haverão de apenas se fechar antes elas.

E o sangue continuará escorrendo, mais e mais. Não há quem queira interromper a torrente carmesim lhe persistente flui. Clamando pelas ruas assim como o rubro sangue do precioso Abel clamou a Deus. A diferença, contudo, reside no fato de que ninguém sabe de nada. Ninguém ouviu e, assim sendo, ninguém falará.

O que persiste é o silêncio.

                            O terrível e cada vez mais ensurdecedor silêncio.

Felipe R.R. Porto

domingo, 20 de agosto de 2023

Satura - Capítulo 4: Tentação

...mas ele não passaria por tudo aquilo novamente. “Prefiro morrer”, pensou ele, um tanto quanto amargamente.

— Já volto — Kális disse, um tom perene na voz, se retirando. Pierrot acompanhou-a com os olhos enquanto se juntava a um pequeno grupo no início do corredor pelo qual vieram. Não duvidava que fossem seus pais e familiares. Não duvidava também que vieram à sua procura para partirem e, havia uma boa probabilidade, para a repreenderem.

Pierrot deu as costas para a cena, voltando a ser imerso pelos pensamentos recentes.

Sua mente, naquele instante, buscava fitar o passado, mas este estava cinzento, como se uma espessa névoa lhe turvasse a visão. Era uma espécie de defesa que surgira com os tempos, anuviando sua perspectiva a fim de que não se ferisse. Um mecanismo.

Havia muito que ele mesmo gostaria de compartilhar com Kális, mas eram palavras duras que, mesmo o mero pensar o deixavam levemente nervoso. Não, aquelas palavras jamais deveriam ver o mundo. Deveriam permanecer com ele. Permanecer nele e, se necessário, ir para o túmulo quando seu corpo cansado finalmente para lá fosse.

Seu silêncio, então, era necessário. Palavras podem ser distorcidas. A serpente distorceu as palavras de Deus. Pierrot queria escapar da possibilidade de ter as suas distorcidas por humanos. Sim, Kális era sua amiga, razão pela qual devesse confiar mais nela. Correto?

Ele não tinha certeza. Não mais.

A conhecia bem demais. A maldita memória permanecia lá. A amizade é um belo laço, mas pode, em circunstâncias, se tornar um escudo inconveniente. O amigo sabe demais, conhece demais, mas quando a amizade se concretiza? Amizade é sempre estar junto? Amigos sempre concordam? Amigos... mentem? Ao longo dos anos o medo se enraizara vigorosamente em Pierrot tal qual uma planta parasita o faria a uma dríade, a adoecendo. Ele não conseguia evitar. Não era forte o suficiente. Não confiava. Todos os seres humanos, em sua ardilosa forma, em momentos soavam tal qual inimigos.

Amava a Kális, admitia. No entanto agora temia que tal sentimento fosse apenas uma cortina erguida por alguém que o apunhalaria através dos tecidos. Ele não perceberia o golpe vindo. Não reagiria.

Aquele era um dos infames momentos onde o que pensava não se alinhava com o que professava crer. Seus olhos novamente se alinhavam com o crucifixo à frente.

— Amor sacrificial — disse ele, um suspiro sendo liberado em seguida. Pareceu doer. — Consigo amar, Senhor. Contudo, consigo me sacrificar?

Ambos sabiam que não.

A presença de Kális naquela noite viera como uma neblina intensa, tal qual aquela que repousa densa em baixios úmidos e frios – densa e quase palpável. Parte dele ansiava pelo passado. Profundamente. Ali, em silêncio na gélida e imaginária neblina, ele conseguia ver algo; apenas contornos, silhuetas, mas era o bastante. Ali ele pôde ver, como se sua memória tivesse se tornado matéria.

Seu passado se tratava apenas de ruínas. Nada mais.

Medo. Medo. Medo. Apenas isso havia ali. E uma insignificante fagulha de esperança. Essa fagulha o fez querer se adiantar na direção da neblina, adentrá-la. Ver se lago jazia em suas entranhas, além das silhuetas.

— Quem sabe — ele disse para si — não há alguma beleza entre os escombros? Quem sabe se lá não encontro minha deusa, minha Vênus singular, da qual conhecerei toda a plenitude?!

Seu coração pulsara forte. Firme. Ele se vê estendendo uma das mãos para tocar as ruínas, mas a recolhe rapidamente em seguida, sua face se distorcendo ao mero pensar, o mero recordar-se da dor.

Ele recolheu a mão como alguém que, hipnotizado, mas agora desperto, vira-se prestes a colocar o braço dentro da terrível toca de escorpiões.

— Eu prefiro morrer! — disse Pierrot entredentes, toda a paisagem se dissipando e ele se vendo novamente na igreja cada vez mais silenciosa.

Ouviu passos às suas costas. Virou-se em tempo de ver Kális retornando.

“Vênus...”, sua mente cantou. Lá, nas profundezas, nos corredores das galerias, ele pedia por ela. Se ela lhe verdadeiramente lhe pertencesse a ela se dedicaria, estaria sempre à espera dela para se dedicar a ela, apenas a ela e plenamente a ela. Ele se devotaria a ela tal qual um fervoroso acólito, feito aqueles que em suas fés se prostram diante de seus deuses. Pediria por mais dela, a despiria a fim de conhecer sua sacra essência em profundidade. Prometeu, conta o mito, fora atado a rochas, e Pierrot sabia que se ataria ao enlevo pálido dos seus seios, alvos como o frio e elegante mármore. Ele se submeteria apaixonadamente a ela, se esconderia sob suas asas... Lembrara-se de dias em que entregue à imensidão de seu sentimento viu-se indagando se era ela uma deusa pálida ou apenas um comum ser humano. No fim não importava, pois seu âmago pedia por mais dela, por mais da sua presença...

Se ela fosse a personificação de um abismo ela pediria para que ela permitisse que ele caísse em sua vasta imensidão...

Ela parou diante dele. Sorriu. O mais belo sorriso que já vira. Ao invés de torna-lo ainda mais imerso em seus pensamentos, isto o fez despertar, rejeitando cada singela tentação.

“Não”, ele disse mentalmente, sorrindo de volta para a bela diante dele. “Eu prefiro morrer a viver tudo isto outra vez.”

Felipe R.R. Porto


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Satura - Capítulo 3: Crucifixo

 


Kális não estava interessada em esperar as pessoas saírem antes que ela pudesse entrar.

Galgaram os degraus que davam acesso ao corredor que levava à porta enquanto o fluxo de pessoas fazia o oposto, sendo flanqueados pelos pares de colunas antes vistos.

Pierrot, enquanto se moviam na direção contrária à das demais pessoas que deixavam o sacro lugar, não pode deixar de notar alguns olhares de reprovação. Não era de se surpreender, porém. Afinal eles estavam adentrando o lugar após o término da celebração. Ainda mais constrangedor seria se alguém demonstrasse ter notado que Kális e ele estiveram ali fora em todo o tempo.

No entanto, nada foi mais constrangedor do que ter encontrado o ministro à porta, se despedindo das pessoas que saiam.

— Amo a arquitetura deste lugar — Kális disse após já terem passado pela torrente de pessoas. Ali dentro havia apenas grupos dispersos ou se dispersando. Na direção do altar pessoas em vestes sacramentais iam de um lado para outro. — Pessoas podem falar o que quiserem sobre religiões cristãs, mas não podem descordar quanto à beleza dos templos.

Ela estava certa.

O lugar era deslumbrante, como antes ele já havia reparado outras vezes, mas não podia não fazê-lo outra.

Kális já havia soltado de sua mão e escapava para o corredor à esquerda. Ela logo parou diante de um dos muitos vitrais, fitando um que ambiciosamente representava a crucificação de Cristo. Uma peça rica para um vitral.

— É realmente lindo — Pierrot comentou, parando ao lado da mulher.

Ela bufou ao lado, se divertindo.

— Só assim para você elogiar a Igreja, não?

— Elogiar a arte na Igreja — ele corrigiu. — Teologia, História e vida prática nem sempre andam de mãos dadas no Catolicismo Romano. Ou mesmo em outras vertentes, sejamos honestos.

Ela não o instigou a falar. Por mais que se divertisse com suas reações, ela certamente não se divertiria com suas opiniões.

— Você ainda crê n’Ele? — ela perguntou, acabando por desviar o olhar da peça de arte. Pierrot a fitou, por sua vez. Era apenas uma representação e ele entendia muito bem disso.

— Claro que sim – ele disse com solenidade. — Creio muito.

Ela apenas assentiu, ele viu com o canto dos olhos.

— Aprendemos que Ele fez o que fez por amor — ela interpelou. — Um grande amor. Um amor assombroso, eu diria. Quero dizer... não vemos muitos atos assim, vemos?

Ele balançou a cabeça em negativa.

Haviam recomeçado a andar, indo em direção ao altar, mas sem deixar o corredor. O lugar se tornara um pouco mais vazio, sendo que dos grupos de antes apenas um permanecia. Não deveriam se demorar ali.

— O que é o amor para você, Pierrot? — ela acabou lhe perguntando quando chegaram ao fim do corredor. Diante deles, na parede, um crucifixo sustentava um homem sofrendo dores horrendas. Pierrot acreditava que boa parte dos “cristãos” falhavam em ser cristãos reais apenas por ignorância – opcional ou imposta.

Ele não era a pessoa mais própria para responder aquilo. Ele sentia que ela deveria saber. E se sabia não entendia a razão de ela perguntar. Seria um teste?

— Eu diria que amor é devoção — disse ele simplesmente.

— Pode falar mais do que isso, por favor — ela o instigou com um tom levado na voz, percebendo que ele não diria mais. — Sei, apenas pelo seu rosto, que gostaria de divagar um pouco mais sobre isso...

Aquilo o divertiu. Era verdade.

— Não me entenda mal, mas o próprio Cristo se devotou à humanidade, ainda que primeiramente Ele o tenha feito a Deus — Pierrot disse. — Já ouviu pessoas dizendo que a igreja – todo os que creem – é a Noiva de Cristo?

Ela fez que sim.

— Ele a amou tanto que morreu por ela — explicou. — A cruz foi uma singular e até escandalosa, assim digamos, declaração de amor. E esse amor, aquele derramamento de sangue... deveria nos fazer chorar torrentes de lagrimas. Infelizmente, não nos devotamos a Ele como Ele se devotou a nós.

Aquilo causou um momento de silêncio. Ele não esperava por esse resultado. Aliás, ele não o pretendia.

— Quando amamos alguém demonstramos certa devoção — ele continuou na tentativa de trazer a conversa para o ponto qual ele cria ser o objetivo de Kális. — Há momentos onde nossos seres parecem implorar, suplicar, uns pelos outros, apenas para que seja sentido Amor. Para que ambos sejam completados. Sem orgulho. Sem humilhação. Havendo devoção sincera de ambas as partes... ambas confiarão. E confiando... se renderão.

— É tão belo que soa utópico, não acha? Soa... arriscado?

— E é — disse ele. — Mas se você consegue sentir a genuinidade do amor do outro seu medo se vai. Você entrega seu coração, seu pequeno bem mais precioso, e decide que pode confiá-lo a alguém.

— Mas e se esta pessoa falhar?

— Tenha certeza que vai.

— Então não é inteligente se fazer algo como se entregar...

— Então, se você chegar a pensar desta forma, não é amor. Claro que não deve continuar.

Aquilo provocou outro momento de silêncio. Ele não perguntaria a ela, mas não conseguia evitar um pensamento: aquela questão a vinha incomodando.

— Devo acrescentar que as pessoas que amam também falham — ele disse. — Você, Kális, falhará com que ama ou vai amar. Não quero focar no aspecto religioso, mas minutos atrás eu estava falando sobre Cristo ter morrido por Sua Noiva. Eu mencionei que a Noiva é a Igreja, Igreja que é composta de seres humanos, os quais são, em termos teológicos, miseráveis. Falhos. A Igreja nunca amará a Cristo na mesma medida em que Ele a amou, mas tudo bem. Ele a ama e sabe que, apesar das falhas, ela O ama também. Aqui chegamos a uma quase impossibilidade nos tempos modernos: o Amor Incondicional.

— O amor hoje é condicional — Kális disse. — Está atado a algo que possa ser oferecido em troca. Eu te amo “se” e não “eu te amo apesar de”. Não é?

Ele fez que sim.

— Amar alguém perfeito... talvez não seja amor — ela completou.

— Concordo. Além de não existirem pessoas perfeitas — ele lançou um olhar para ela, que sorriu, desviando o olhar para o ponto acima deles.

Onde estava o crucifixo.

— É. Existiu uma — ele se corrigiu, pensando na pessoa do homem representado no triste objeto.

— Queria não ter falhado com você — ela disse. — Você não merecia.

— Não carregue o fardo sozinha — disse ele. — Também tive minhas falhas.

— Hoje em dia eu não vejo assim — ela contou. — Acho que você foi o único que me amou. Em toda a minha vida, Pierrot. Bom, você me amava, não?

Ele, desde o inicio daquela conversa, teve medo de que aqueles rumos fossem tomados. Não queria. No fundo, por um lado, ele temia crer menos que ela nas coisas que dissera nos últimos minutos.

Apesar disso ele não era um mentiroso.

— Sim — ele disse, por fim, mas não se voltou a ela. — Creio em anjos e você era o meu. Acredito que pecamos e você era meu pecado mais doce. Você era meu sol... a minha fúria. Minha musa, minha luxuria e maior desejo. Tudo isto temos na vida humana... e era isso o que você era pra mim. Vida — suspirou ao dizê-lo, um tanto descrente de estar dizendo todas aquelas coisas. Daquela forma. Ainda existia o medo em seu coração, mas decidiu lutar contra ele a fim de dizer o que já queria ter dito antes, mas como uma declaração e não como uma lembrança, como agora o fazia. — Você se tornou o lugar onde eu queria me demorar, onde me sentia abraçado. Eu apenas desejava que você continuasse me cativando, me guiando para o seu mundo. Eu me “devotava” a você, desejoso de fazer parte do seu “reino”. Adentrar sua aura e espírito; sua alma e carne...

Pierrot fitava o crucifixo, mas se voltou para Kális antes de prosseguir:

— Já leu a parte da Bíblia que fala “por suas feridas fomos curados” ou “sobre si levou dor e transgressão”... “homem de dores”?

Ela fez que sim, os olhos um escuro oceano. Aquosos.

— Sua dor e feridas... eu as teria tomado para mim — disse ele enquanto fitava a profundidade daquele sublime par de olhos, as voltando-se para o crucifixo outra vez. — Eu teria, se necessário, aceitado se crucificado por você.

A verdade, Pierrot sabia, era que, apesar de tudo, ele ainda a amava...

Felipe R.R. Porto

terça-feira, 25 de julho de 2023

Satura - Capítulo 2: Memória


 Pierrot aceitara o convite.

“A memória é algo curioso”, Pierrot pensou enquanto caminhava ao lado de Kális. Memórias eram a razão do passeio. Kális o conduziu por praças – naquela noite levemente cobertas da neve que começara a se precipitar mais cedo, ainda o fazia, mas de forma amena – onde caminharam quando mais jovens, bancos onde já se sentaram e conversaram enquanto, vez ou outra, bebiam ou comiam algo. Por ali também já estivera com outros poucos amigos que tivera...

Memórias resumem as pessoas, suas mentes e olhares – feridos ou não. Elas estarão sempre lá, às vezes palpáveis enquanto outras estarão enterradas, escondidas no interior de cada um.

Sua bivalência também é algo curioso, no entanto, pois elas fortalecem, mas também devoram – às vezes sorvendo de todo uma pobre alma, afundando-a em lamentos.

Isso acontecia a Pierrot agora, que era surpreendido pelo poder das lembranças. Em cada canto daquela cidade ele via fantasmas de Kális e de tantos outros. Inclusive de si mesmo – mas alguns diferiam daquele que sempre levava consigo. Estavam lá, eternamente, mas ao mesmo tempo, se mantinham dentro de cada um deles, como faria um tresloucado amante pela pessoa amada.

— Você os vê também, não vê? — ele perguntou a ela. — Nossos fantasmas em cada canto dessa cidade...

— Não seria estranho se não víssemos? — ela retrucou. — Aliás, não se tratam de maus fantasmas. Somos nós. Apenas nós, Pierrot. Podemos hoje nos arrepender de coisas que fizemos, mas isso não faz de nós “assombrações”, faz?

Ele a entendia. Ela estava certa.

Embora não de todo.

Em alguns lugares Pierrot via a si, mas aquele mesmo “eu” que o aguardava pelas estranhas e mórbidas galerias de sua alma. Aquele mesmo “eu” que um dia ele jurara vencer, mas até então não conseguia. Sim, aquele “fantasma” o perseguia obsessivamente como o amante anteriormente mencionado. Eles eram tão diferentes, então não podiam ambos se tratar dele. Podiam? Pierrot gostaria de poder ver-se livre das dores do passado, das frustrações, de forma que olhar para o amanhã fosse possível e positivo.

Ele esperava que isso, quem sabe, acontecesse. Poderia dizer que sentia fé da realidade disso, ainda que o medo persistisse lá.

Enquanto isso o fantasma persistiria. Ele o veria quando fitasse seu reflexo e naqueles olhos – em seus olhos – veria apenas obsessão.

A memória que devora e melancolicamente o engole. Aquela que assombra. Que está sempre lá.

— As lembranças são uma espécie de refúgio — Kális disse enquanto viravam uma esquina e uma praça se revelava. Haviam voltado à praça onde se achava a igreja. Foi naquela mesma praça que vieram a se conhecer anos atrás. Era uma noite como aquele, fria e com cânticos sacros. Eles eram pouco mais que crianças, mas fora o bastante pra que uma história tivesse início entre eles. E também um fim. No entanto, era “o” fim? — Um templo . Elas são aquilo que somos, ou ao menos a água da qual bebemos, nos nutrindo e nos moldando. Acabam, ainda que amargas aqui e ali, sendo mesmo nosso alimento. Alguns de nós gostariam de ainda ser aqueles fantasmas. Eu mesma gostaria...

E ela fez silêncio. Ela havia mudado, Pierrot agora notava. Houve tempos em que ela era geniosa e até inconsequente. Ali, no entanto, estava uma pessoa, aparentemente, arrependida?

— É inegável o poder que elas, as lembranças tem — Pierrot disse, não deixando que o silêncio se estendesse demais. — Elas são nosso solo, assim como acabam sendo, muitas vezes, as próprias sementes. Às vezes são paternas e não posso deixar de lado que há péssimos pais neste mundo. Se não soubermos gerenciá-las – perdão pelo termo um tanto técnico – elas serão preciosas demais, divindades para nós. Um tipo de deus... ou mestre contra os quais nada tentaremos...

“Ou fantasmas”, pensou ele apenas, embora sua vontade fosse dizê-lo em voz alta.

— Falamos disso como se a “memoria” fosse algo palpável. Uma pessoa? — Kális sugeriu. — Certo, ela tem seu valor, mas nós a construímos, não? Nós somos os mestres, Pierrot. A “memória” deveria ser mais grata a nós ao invés de apenas nos causar saudade. Saudade é algo bom de se sentir, mas em momentos é como se fossemos golpeados... ainda que não queiramos nos deixar esquecer. Enlouquecedor, não acha? — ela indagou, lhe lançando um olhar vesgo, sorrindo em seguida.

— Isso no mínimo — ele respondeu, sorrindo de volta enquanto se sentavam no mesmo banco de antes. — Ela nos salva e educa, depois nos seduz de formas grotescas que cada um de nós bem conhece.

— Se pudesse dizer algo para a “memória”, o que diria?

Ele não precisou pensar muito.

— Diria que a amo... mas que a odeio por isso.

Kális fez uma careta, dando a entender que a resposta fora boa, mas não era tudo.

— Você não acha que é dramático demais? — comentou ela pouco antes de o sino começar a repicar às suas costas. Olhando na direção do templo viram que este se esvaziava. — Venha comigo – chamou ela, não percebendo o quão estranho aquilo soara, visto que, como antes, ela apenas lhe tomara pela mão e o forçara a ir com ela.

Felipe R.R. Porto

terça-feira, 11 de julho de 2023

Satura - Capítulo 1: Satura

 


As ruas estavam calmas. Adiante um coro cantava, mas ouvidos que não procurassem por ele não haveriam de ouvi-lo.
Pierrot deixou o restaurante pouco depois de saborear sua melancólica refeição, tendo tomado duas taças de vinho – o bastante para deixa-lo ao menos leve. Ele precisava se sentir assim naquele momento. Precisava de algum descanso ou algo que se parecesse com isso.
Caminhar pelas ruas molhadas sob as luzes alaranjadas dos postes lhe trouxe um sentimento de satisfação que há muito não sentia. Ainda que se tratasse apenas de uma caminhada, sentir-se livre não era algo a que devesse ser referido como “apenas”. Para Pierrot significava muito. Os anos no circo haviam o consumido de forma inesperada, ainda que gostasse de sua arte e de entreter pessoas. Uma ironia?
Não importava. Ali, naquele momento, ele não queria que importasse.
Não estava caminhando a esmo, ainda que livre. Seguia o coro que persistia cantando. Pierrot julgava que a celebração deveria estar em sua metade, visto que fazia pouco mais de uma hora que, da varanda de seu quarto, assistira os devotos em procissão metódica.
Poucas pessoas caminhavam pelas ruas naquele momento e nenhum carro, ou qualquer outro veículo, fora visto. Ele preferia assim. Afinal, na verdade, aquele não era um vilarejo tão desconhecido para ele. Verdade era que crescera ali e cada passo era como adentrar lembranças. Lembranças. Ainda estava imerso nelas quando a bela igreja assomou diante dele, situada, como era de costume em várias cidades, em uma praça apenas tomada por esta. Os vitrais brilhavam em cores vivas, cativados pela luz interna.
Pierrot cruzou a praça de paralelepípedos. Sentiu-se um tanto desconfortável, mas logo tal sensação se foi quando constatou – estranhamente – que não vestia mais as roupas de Arlequim.
Alguns passos depois o colocaram diante da igreja. Dois pares de colunas sustentavam a cobertura abobadada do pequeno corredor de acesso à nave principal do templo. As portas estavam abertas.
Entrou.
O local estava razoavelmente vazio, o que ele não esperava. Vários bancos estavam desocupados e os fieis se espalhavam ao longo do espaço oferecido. O ministro, um homem grisalho com seus quase cinquenta anos, prosseguia com seu sermão. Pierrot não quis dar atenção demais, mas apenas procurou um lugar. Como não tinha preferência sentou-se no último, seus olhos logo vagando pela construção. Catedrais, igrejas, capelas dificilmente eram locais escassos em beleza. Normalmente era o oposto. Vitrais vivos em cores, esculturas pelos cantos e floreios ornamentando paredes, colunas e abóbadas.
Olhava da direita para esquerda, da esquerda para a direita e repetia. Da esquerda para direita, da direita para a esquerda...
... sobressaltou-se um tanto audivelmente quando seus olhos voltavam para a direção à sua esquerda, onde uma jovem vestida de branco havia se sentado. Ela não deixou de rir da reação dele, enquanto tudo o que ele pôde fazer foi olhar ao redor a perceber que olhavam para ele. Baixou os olhos, não desejando estender o momento. Percebeu que o ministro também havia se silenciado.
Olhares. Olhares. Aqueles olhares... Começara a ser abatido pela tristeza, mas a jovem o tomou pela mão e, pouco tempo depois, estavam ambos na praça.
— Você não mudou muito, não é? — Kális perguntou. — Ainda consigo ver como socializar te incomoda.
— Bom, eu não vejo desta forma — Pierrot disse, após sentir-se recomposto o bastante para prosseguir. — Eu mudei, apenas não mudei como se espera...
Ele sorriu, mas era apenas uma leve torção nos lábios. Fora uma piada o que dissera, mas sabia as implicações. Kális também sabia. Ainda que o tempo tivesse passado desde a última vez que se viram, ela ainda parecia conhecê-lo bem o suficiente. 
— Ainda olha demais para dentro de si, eu vejo — ela disse, conclusiva — Isso, às vezes, não é a melhor forma de viver.
— Ainda que os maiores problemas existentes estejam dentro de nós?
— Exatamente pelo fato de que os maiores problemas existentes estejam dentro de nós.
Ela sorriu de volta, quase que o imitando.
— Somos nossos piores inimigos, Kális. Ignorar esta verdade é pedir uma auto sabotagem. E nós, humanos, somos muito bons nisso.
— Certo, e como tem estado seu inimigo interior? — a pergunta não demorou em vir.
Ele se viu paralisado por um instante. Aquilo fora inesperado. — Você nunca gostou de me ouvir falar sobre isso — relembrou Pierrot. — Não é, então, muito sábio da sua parte perguntar isso, não acha?
Kális deu de ombros.
— Talvez hoje eu não esteja pensando em ser sábia. Cometi erros muito maiores do que ouvir um amigo falar sobre como se sente – e eu não chamaria isto de erro.
Pierrot sorriu, baixando os olhos, mas ouvi-la chamá-lo de amigo mexeu com algo lá dentro, em seu interior. Olhando outra vez para Kális ele notou que ela o olhava como se esperasse algo. Ela realmente queria ouvi-lo?
— Ele está barulhento — Pierrot disse, suspirando antes de prosseguir. Por mais que ela houvesse o instigado, ainda não se sentia seguro o bastante para falar sobre. Normalmente não o fazia. — Às vezes gosto de imaginar minha existência sendo algo como uma galeria. A Galeria da minha essência; do meu espírito. Há uma música tocando constantemente, a música da minha alma. Volta e meia volto para lá, caminhando por suas sessões. Volta e meia também me deparo com um espaço vazio, um buraco em minha alma, do qual às vezes busco cuidar. Meu “outro eu” também vaga por esta Galeria, sempre servido de uma taça onde prova das minhas lágrimas – uma vez ele ofereceu-a para mim. Aceitei, mas apenas uma vez. Foi quando, cansado, resolvi esperar por ele, até que das sombras dos corredores ele surgisse...
Ele parou. Doía falar a respeito. Era como tentar sair de si mesmo, mas rasgando a pele para isso. Provavelmente pelo fato de não tê-lo feito em anos. Aliás, já o fizera realmente antes? Provavelmente não, muito menos com aquelas palavras. Sim, eram honestas, eram sua forma de descrever como se sentia. Era o melhor que podia fazer. Do contrário nada poderia, pois se não falasse como falava seria incapaz de descrever-se. Era como se via, feliz ou infelizmente.
— Ele não parece ser muito simpático — Kális comentou, mas sem aparente desconforto diante da tão metafórica narração.
— Normalmente não é.
— Esta Galeria... — ela persistiu, soando genuinamente, incomodamente curiosa — o que mais pode dizer sobre ela? Te conheço faz tanto tempo, mas faz tempo também que não nos falamos. Foi construída recentemente?
Pierrot não pode evitar se divertir.
— Creio que ela foi “compreendida recentemente” — respondeu ele. — Penso que sempre esteve lá. Porém, é maior do que eu mesmo esperaria. Apesar de ter paredes há grandes salões e no centro há um espaço, semelhante a uma praça – uma praça extremamente grande -, cercada pelos muros dos meus medos e onde também encontro a solidão... e nela e com ela caminho. E... lá — ele engoliu, não sabendo se era certo continuar —, lá, dentre tanto o que sou capaz de ver, eu ainda... vejo você. Por alguma razão você está lá, mas você está de costas e não me mostra seu rosto mesmo quando eu peço...
Ali, porém, ela o fitou profundamente. Quase o constrangendo. Desejava que ela o fizesse parar, mas seus olhos pediam o oposto.
— “O que vai acontecer?” é o que me pergunto com frequência — ele acrescentou enquanto continuava. — Lá, em minha mente, onde certo caos reina. Onde posso ver sombras mesmo nas mais pálidas mãos, onde últimas refeições são sempre oferecidas! Lá eu te sinto vividamente... mas o que significa? O que vai acontecer? Há o desejo de viver, de me aproximar e tocar, mas há o medo. Forte e incontrolável medo. Se aproxima, então, o triste crepúsculo da minha alma. Fecho os meus olhos sempre que chega e, ainda que você não se volte para mim eu estendo a mão, mas não te toco. Toco a mim. Toco o meu “eu” apavorado acocorado pelos escuros cantos da mórbida Galeria.
Ela pareceu não saber o que dizer. Não que ela nunca o tivesse levado à sério antes, mas ela, naquele instante, diante dele, pareceu diferente. Era como se ela estivesse... sofrendo também? Ele não sabia. E mesmo que fosse isso e ela também sofresse, o exteriorizar aquilo ainda era uma ferida se abrindo.
Estava se sentindo exposto. Vulnerável.
Kális havia desviado o olhar. Observava a praça deserta. Havia certo ar tristonho, qual estranhamente tornou-se mais presente quando corais cantaram à suas costas, dentro do templo.
— Você se sente perdido? – ela perguntou, seus olhos se voltando pra ele.
— Talvez... — foi a resposta. — Esta Galeria, apesar de ser um lugar estranho e imenso, tem tantas portas. Portas e mais portas e até então, entretanto, não abri nenhuma delas. Caminhos demais e, infelizmente, acabo desconfiando de cada uma delas. Olhei pelos buracos das fechaduras, vi alguma beleza do outro lado, mas é tudo? Não me soa o suficiente para que eu arrisque. Sua vista desta praça não vai lhe dizer tudo o que precisa saber sobre toda a cidade. Quanto a mim, Kális, é um paradoxo: há correntes em mim, mas em momentos sinto que sou eu que me agarro a elas.
Pierrot parou de falar. Neste momento não pela dificuldade em prosseguir, mas por perceber que uma das mãos da mulher ao seu lado agora repousava sobre as suas, quais ele, inconscientemente, deixara descansar sobre seu colo.
— Há um momento em que você se volta pra mim na Galeria — ele acrescenta, mas as palavras a serem ditas pareciam não desejá-lo, sendo frutos que um dia seriam eminentemente colhidos, mas era como se não quisessem tal destino. Talvez fossem apenas palavras, apenas alegorias, mas ainda assim temeu e se constrangeu pela persistente sensação de vulnerabilidade.
Mesmo quando sente a mão de Kális segurar mais firmemente as suas.
— Lá — ele diz ao decidir prosseguir —, quando minhas forças, meu vigor, se esvaem com o avanço do tempo que me obscurece os olhos, me percebo velho. Cansado. Há, no entanto, uma última vez em que tento te alcançar. E, por incrível que pareça, eu vejo que você se volta para mim, seu rosto finalmente revelado após tamanha espera! Mas percebo então que meus olhos se tornaram débeis, minha visão turva. Eu, lá, estou velho demais e não posso mais ver seu rosto.
Ele mesmo não entendia plenamente aquilo – ou se recusava a entender. Kális, porém, se afundou em silêncio. Os lábios se separaram como se prestes a dizer algo. Mas nada a respeito veio deles. Contudo, sem largar da mão de Pierrot ela se colocou de pé.
— Vamos dar uma volta — chamou ela, solenemente.

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"SATURA" é o termo em Latim para Sátira.

Na literatura latina, Sátira é uma composição livre e irônica contra instituições, costumes e ideias da época. Podendo ser também uma composição poética que ridiculariza os vícios e as imperfeições.

Felipe R.R. Porto


segunda-feira, 22 de maio de 2023

Solidão - Capítulo 6 : Bresso


A cidade estava um tanto movimentada. Um sino repicou mais adiante. Ele sabia de onde vinha, embora não avistasse ainda o local. O sino prosseguiu repicando enquanto Arlequin testemunhava um fluxo cada vez maior de pessoas se arrastarem na mesma direção. Isso confirmava sua suspeita de que provavelmente uma missa seria celebrada em pouco tempo.

Não importava, porém. Não fazia diferença. Fazia? Ele não pode conter o impulso de elevar seu olhar contra as nuvens cinzentas daquele dia. Seus olhos, no entanto, não queriam apenas fitar o céu. Eles procuravam uma resposta.

Tal resposta, ao menos naquele instante, não veio.

Arlequin avistou mesas dispostas em frente a um prédio simples, mas de aparência reconfortante. Possuía dois andares e um toldo cor vinho se debruçava sobre as cadeiras antes mencionadas. O local não parecia apenas um restaurante, mas um hotel. Isto fez com que logo quisesse parar, pensar e decidir passar a noite ali.

O restaurante, conforme Arlequin se aproximou, revelou ter como especialidade “massas”. Curioso, mas isso não era um detalhe que fosse relevante quanto sua permanência ou partida. Logo ele conseguiu um quarto para si, sentindo certa urgência em tomar um banho e se livrar da maquiagem e roupas. Deveria tê-lo feito antes, mas não conseguira. Esperava fazê-lo agora – bastava a forma como o olharam quando adentrou o restaurante que, apesar de simples, ainda conseguia ser requintado, boa parte da mobília sendo feita de mogno reluzente.

Ignorou os olhares, entretanto.

Já no quarto lhe cedido ele percebeu que não tinha mais tanta urgência em procurar um chuveiro. Ao invés disso ele quis aproveitar algo que o quarto lhe fornecia: havia uma singela sacada dando para a rua por onde viera e por onde as pessoas prosseguiam sua romagem. Havia uma amurada sobre a qual se debruçou, apoiado nos cotovelos, enquanto seus olhos acompanhavam as pessoas passando e, pouco depois, ele percebeu que podia avistar, dali, a tal igreja. Era uma capela, apesar de robusta. Sua formação não sugeria uma nave trabalhada como em catedrais, mas uma rosácea gótica demarcava a fronte, esta encimada pela costumeira torre pontiaguda, qual, sobre o telhado cônico, abrigava o sino, cujas badaladas ecoavam, eminentes.

Arlequin, voltando sua atenção para as pessoas transitando pouco abaixo, notou que algumas o olhavam com estranheza. Estranheza virou assombro quando ele sacou seu maço de cigarros e de lá tirou um – o último – e o acendeu. A fumaça lhe encheu os pulmões e depois se encontrou com a brisa fria, sendo levada para a direção da qual ele viera pouco tempo atrás enquanto ele via expressões horrorizadas de algumas pessoas, homens, mulheres ou crianças. Ele entendia o assombro. Ele era um palhaço afinal. O que ele esperava?

Ele possuía uma resposta: esperava que fosse visto como mais do que isso.

Ele suspirou, pronto a levar o cigarro outra vez aos lábios, mas estacou antes que isso acontecesse. Lá embaixo ele a viu. Quanto tempo fazia? Aqueles cabelos negros demais lhe caindo sobre os ombros em uma cascata escura, mas reluzente como obsidiana. As vestes eram claras. Alvas. Ela não o vira. Ele não esperava que ela o fizesse. Ainda assim sentiu que estremecia, sentia que as palavras em seu interior, se é que isto era possível, falhavam. Apesar do tempo, dos anos, as palavras ainda estavam lá, repletas de esperança, mas também de medo.

Lembrou-se de anos atrás, quando aquele belo resto emoldurado em fios escuros estava diante dele, olhos também negros que o fitavam com afinco, quase capazes de lhe perfurar a alma. Ela viera a ele dizer que talvez não fosse certo prosseguirem... Não fora o dia mais sombrio de sua vida, mas via-se, desde então, sem amor, vazio e enfermo. Parecia sangrar continua e copiosamente. Exausto.

— Mas — ele se lembrava de ter dito — seu amor ainda corre em minhas veias, ainda me aquece. Me mantem vivo. Eu sei que posso ter estado distante, mas não estou morto. Não estou...

— Pierrot... — ela começara, mas a memória se fora em um instante, como a fumaça de seu cigarro minutos atrás. Arlequin se viu, então, desperto, mas a bela já se afastava, a multidão começando a minguar e a noite a cair, suas sombras agora caindo mais espeças. Ao longe Arlequin viu relâmpagos, trovões poucos segundos depois.

Tragou do cigarro mais uma vez, o calor da brasa já lhe lambendo os dedos. Suspirou, assistindo a fumaça partir e as memórias tentando voltar. Anos haviam se passado e a voz dela ainda era tão vívida, o toque de seus lábios ainda tão presentes. Ele sabia quantas trevas havia em si, mas naqueles dias ela era a luz que amenizava a presença da penumbra. Era tolo, mas ele ainda a amava...

Ele deveria? Talvez não. Provavelmente não. Deveria apenas prosseguir. Ainda assim havia nele o desejo de conhecê-la melhor, visto que sentia que não havia feito isso como deveria. Queria conhecer sua essência e chafurdar nas vagas desta; se perder nas águas do mar que ela era. Em toda a sua beleza, todo seu brilho...

— Este é seu castigo, meu caro — ele disse para si, tentando soar conformado. — Seu castigo: ter o mais belo tesouro deste mundo e não poder tocá-lo. Ela está logo ali, mas... onde ela está?

Há quem diga que tal pergunta não faça sentido, mas não há quem diga que é impossível ser só na multidão.

O cigarro em seguida se apagou, as cinzas caíram sobre o toldo e foram levadas pelo vento que ganhava força. Se apagou, seu calor definhou assim como a esperança de Arlequin – lhe escapando por entre os dedos feito areia. E, então, indo-se a esperança, permanece o desespero.

Permanece o pandemônio em calma alma. Calma, mas onde os sentimentos são perturbadoramente ruidosos. Há o amor, mas mentiras se entrelaçam a palavras de afeto. O relógio da vida, um cacofônico pêndulo, muda, permanecendo as mesmas malditas memórias. E, apesar de tudo isso...

— Eu ainda a amo — ele concluiu ao sentir os primeiros flocos de neve recomeçarem a cair. Frios. Tão frios. — Temo as falhas. Há este medo, mas ele parece incapaz de extinguir a saudade.

Arlequin, por fim, decidiu pelo banho, a exaustão e a angustia se abatendo sobre ele. Lá, enquanto a água o lavava, ela escorria em tons esbranquiçados, também em cinza e preto, o ralo engolindo o palhaço em si.

Cerca de trinta minutos depois Pierrot descia para o restaurante. Olhos o fitaram, mas como se não o tivessem visto antes. De fato não o haviam visto, de certa forma. Haviam avistado um palhaço em vestes quadriculadas em preto e branco, trazendo duas malas consigo. Agora viam um rapaz que calçava sapatos pretos, suas calças sendo da mesma cor, um belo paletó escuro – sobre uma camiseta mais clara – embora não preto ou requintado, lhe protegeria braços e peito da friagem da noite que prometia trazer mais neve. Os cabelos pretos fartos ondulavam graciosa e naturalmente. Longos, mas longe de chegarem aos ombros, adornavam as expressões do rosto jovem, mas melancólico do rapaz.

Pierrot ignorou os olhares e procurou um lugar e lá se sentou. Escolhera uma mesa com quatro lugares à beira da janela, de onde ele podia ver a neve continuar a cobrir as ruas.

— O que vai querer, jovem senhor?

Pierrot se virou de súbito, sobressaltado com a recém chegada presença do garçom; um homem que parecia estar chegando aos seus quarenta anos. A vestimenta era simples, mas elegante, se tratando de caças pretas e uma camisa social branca. Vestes leves permitida pela presença certa de um aquecedor no local.

O homem não repetiu a pergunta. Pierrot, então, agarrou o Menu que apenas agora notou ante ele e o folheou. A presença do garçom logo tornou-se incômoda, deixando o jovem nervoso – nervoso o bastante para que se visse incapaz de escolher.

— Me sugere algo?

— Temos, especificamente hoje, um macarrão que ficaria ótimo se acompanhado de uma taça de vinho — disse o homem. — O senhor também poderia escolher algo para a noite que prossegue esfriando, como uma sopa de legumes...

De tudo o que o homem sugerira o que saltou em sua mente foram as palavras “taça de vinho”. Isso fez com que ele optasse pelo macarrão, ainda que a sopa tivesse lhe soado atraente.

O homem saiu. Pouco depois um rapaz – pouco mais jovem que o próprio Pierrot – se aproximou com uma travessa prateada reluzindo, logo depositando uma travessa menor com várias torradas. Um leve aperitivo. Pouco depois depositou um recipiente menor, ainda lacrado, onde Pierrot pôde ler o nome “Bresso”.

Ele franziu o cenho, cético, enquanto uma torrente de lembranças lhe vinha à mente. Ele não quis dar espaço a elas. Buscou agir como se elas não estivessem lá, à espreita. Sem pensar demais ele alcançou o queijo, rompeu o lacre, o destampou. O cheiro lhe chegou inevitável – fazendo sua boca salivar e seus olhos marejarem – enquanto ele também alcançava uma das torradas e com uma espátula que descobrira junto da travessa passou o queijo nessa e comeu.

Era delicioso, como lembrava que era. Porém, ele não foi capaz de não sentir também um gosto levemente salgado no canto dos lábios, constatando que uma solitária lágrima conseguira escapar de seu controle. Em um mero instante estivera absorto e ela lhe escapara. Mas quão absorto alguém deveria estar a ponto de que lágrimas não sejam notadas? Ele não tinha uma resposta. Tudo o que lhe acometia era colheita de semeaduras passadas. Isso, ao invés de uma resposta, lhe trazia outra pergunta: ele seria capaz de dizer adeus à tudo aquilo – fosse bom ou ruim – que havia o transformado em quem ele atualmente era?

Pierrot suspirou, a garganta desejando trancar enquanto ele decidia não se render ao pranto; enquanto ele sondava seu interior em busca da resposta que ele sabia que deveria encontrar, mas, até então, não conseguia fazê-lo.

Alcançou mais uma torrada. Repetiu o processo enquanto aguardava o prato principal. A pequena e ressequida fatia de pão somada ao queijo formavam algo ótimo, claro. Todavia, infelizmente, aquela acabara sendo a refeição mais triste, e mesmo mais amarga, que já tivera.

Felipe R.R. Porto