terça-feira, 25 de julho de 2023

Satura - Capítulo 2: Memória


 Pierrot aceitara o convite.

“A memória é algo curioso”, Pierrot pensou enquanto caminhava ao lado de Kális. Memórias eram a razão do passeio. Kális o conduziu por praças – naquela noite levemente cobertas da neve que começara a se precipitar mais cedo, ainda o fazia, mas de forma amena – onde caminharam quando mais jovens, bancos onde já se sentaram e conversaram enquanto, vez ou outra, bebiam ou comiam algo. Por ali também já estivera com outros poucos amigos que tivera...

Memórias resumem as pessoas, suas mentes e olhares – feridos ou não. Elas estarão sempre lá, às vezes palpáveis enquanto outras estarão enterradas, escondidas no interior de cada um.

Sua bivalência também é algo curioso, no entanto, pois elas fortalecem, mas também devoram – às vezes sorvendo de todo uma pobre alma, afundando-a em lamentos.

Isso acontecia a Pierrot agora, que era surpreendido pelo poder das lembranças. Em cada canto daquela cidade ele via fantasmas de Kális e de tantos outros. Inclusive de si mesmo – mas alguns diferiam daquele que sempre levava consigo. Estavam lá, eternamente, mas ao mesmo tempo, se mantinham dentro de cada um deles, como faria um tresloucado amante pela pessoa amada.

— Você os vê também, não vê? — ele perguntou a ela. — Nossos fantasmas em cada canto dessa cidade...

— Não seria estranho se não víssemos? — ela retrucou. — Aliás, não se tratam de maus fantasmas. Somos nós. Apenas nós, Pierrot. Podemos hoje nos arrepender de coisas que fizemos, mas isso não faz de nós “assombrações”, faz?

Ele a entendia. Ela estava certa.

Embora não de todo.

Em alguns lugares Pierrot via a si, mas aquele mesmo “eu” que o aguardava pelas estranhas e mórbidas galerias de sua alma. Aquele mesmo “eu” que um dia ele jurara vencer, mas até então não conseguia. Sim, aquele “fantasma” o perseguia obsessivamente como o amante anteriormente mencionado. Eles eram tão diferentes, então não podiam ambos se tratar dele. Podiam? Pierrot gostaria de poder ver-se livre das dores do passado, das frustrações, de forma que olhar para o amanhã fosse possível e positivo.

Ele esperava que isso, quem sabe, acontecesse. Poderia dizer que sentia fé da realidade disso, ainda que o medo persistisse lá.

Enquanto isso o fantasma persistiria. Ele o veria quando fitasse seu reflexo e naqueles olhos – em seus olhos – veria apenas obsessão.

A memória que devora e melancolicamente o engole. Aquela que assombra. Que está sempre lá.

— As lembranças são uma espécie de refúgio — Kális disse enquanto viravam uma esquina e uma praça se revelava. Haviam voltado à praça onde se achava a igreja. Foi naquela mesma praça que vieram a se conhecer anos atrás. Era uma noite como aquele, fria e com cânticos sacros. Eles eram pouco mais que crianças, mas fora o bastante pra que uma história tivesse início entre eles. E também um fim. No entanto, era “o” fim? — Um templo . Elas são aquilo que somos, ou ao menos a água da qual bebemos, nos nutrindo e nos moldando. Acabam, ainda que amargas aqui e ali, sendo mesmo nosso alimento. Alguns de nós gostariam de ainda ser aqueles fantasmas. Eu mesma gostaria...

E ela fez silêncio. Ela havia mudado, Pierrot agora notava. Houve tempos em que ela era geniosa e até inconsequente. Ali, no entanto, estava uma pessoa, aparentemente, arrependida?

— É inegável o poder que elas, as lembranças tem — Pierrot disse, não deixando que o silêncio se estendesse demais. — Elas são nosso solo, assim como acabam sendo, muitas vezes, as próprias sementes. Às vezes são paternas e não posso deixar de lado que há péssimos pais neste mundo. Se não soubermos gerenciá-las – perdão pelo termo um tanto técnico – elas serão preciosas demais, divindades para nós. Um tipo de deus... ou mestre contra os quais nada tentaremos...

“Ou fantasmas”, pensou ele apenas, embora sua vontade fosse dizê-lo em voz alta.

— Falamos disso como se a “memoria” fosse algo palpável. Uma pessoa? — Kális sugeriu. — Certo, ela tem seu valor, mas nós a construímos, não? Nós somos os mestres, Pierrot. A “memória” deveria ser mais grata a nós ao invés de apenas nos causar saudade. Saudade é algo bom de se sentir, mas em momentos é como se fossemos golpeados... ainda que não queiramos nos deixar esquecer. Enlouquecedor, não acha? — ela indagou, lhe lançando um olhar vesgo, sorrindo em seguida.

— Isso no mínimo — ele respondeu, sorrindo de volta enquanto se sentavam no mesmo banco de antes. — Ela nos salva e educa, depois nos seduz de formas grotescas que cada um de nós bem conhece.

— Se pudesse dizer algo para a “memória”, o que diria?

Ele não precisou pensar muito.

— Diria que a amo... mas que a odeio por isso.

Kális fez uma careta, dando a entender que a resposta fora boa, mas não era tudo.

— Você não acha que é dramático demais? — comentou ela pouco antes de o sino começar a repicar às suas costas. Olhando na direção do templo viram que este se esvaziava. — Venha comigo – chamou ela, não percebendo o quão estranho aquilo soara, visto que, como antes, ela apenas lhe tomara pela mão e o forçara a ir com ela.

Felipe R.R. Porto

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