Kális não estava interessada em esperar as pessoas saírem antes que ela pudesse entrar.
Galgaram os degraus que davam acesso ao corredor que levava à porta enquanto o fluxo de pessoas fazia o oposto, sendo flanqueados pelos pares de colunas antes vistos.
Pierrot, enquanto se moviam na direção contrária à das demais pessoas que deixavam o sacro lugar, não pode deixar de notar alguns olhares de reprovação. Não era de se surpreender, porém. Afinal eles estavam adentrando o lugar após o término da celebração. Ainda mais constrangedor seria se alguém demonstrasse ter notado que Kális e ele estiveram ali fora em todo o tempo.
No entanto, nada foi mais constrangedor do que ter encontrado o ministro à porta, se despedindo das pessoas que saiam.
— Amo a arquitetura deste lugar — Kális disse após já terem passado pela torrente de pessoas. Ali dentro havia apenas grupos dispersos ou se dispersando. Na direção do altar pessoas em vestes sacramentais iam de um lado para outro. — Pessoas podem falar o que quiserem sobre religiões cristãs, mas não podem descordar quanto à beleza dos templos.
Ela estava certa.
O lugar era deslumbrante, como antes ele já havia reparado outras vezes, mas não podia não fazê-lo outra.
Kális já havia soltado de sua mão e escapava para o corredor à esquerda. Ela logo parou diante de um dos muitos vitrais, fitando um que ambiciosamente representava a crucificação de Cristo. Uma peça rica para um vitral.
— É realmente lindo — Pierrot comentou, parando ao lado da mulher.
Ela bufou ao lado, se divertindo.
— Só assim para você elogiar a Igreja, não?
— Elogiar a arte na Igreja — ele corrigiu. — Teologia, História e vida prática nem sempre andam de mãos dadas no Catolicismo Romano. Ou mesmo em outras vertentes, sejamos honestos.
Ela não o instigou a falar. Por mais que se divertisse com suas reações, ela certamente não se divertiria com suas opiniões.
— Você ainda crê n’Ele? — ela perguntou, acabando por desviar o olhar da peça de arte. Pierrot a fitou, por sua vez. Era apenas uma representação e ele entendia muito bem disso.
— Claro que sim – ele disse com solenidade. — Creio muito.
Ela apenas assentiu, ele viu com o canto dos olhos.
— Aprendemos que Ele fez o que fez por amor — ela interpelou. — Um grande amor. Um amor assombroso, eu diria. Quero dizer... não vemos muitos atos assim, vemos?
Ele balançou a cabeça em negativa.
Haviam recomeçado a andar, indo em direção ao altar, mas sem deixar o corredor. O lugar se tornara um pouco mais vazio, sendo que dos grupos de antes apenas um permanecia. Não deveriam se demorar ali.
— O que é o amor para você, Pierrot? — ela acabou lhe perguntando quando chegaram ao fim do corredor. Diante deles, na parede, um crucifixo sustentava um homem sofrendo dores horrendas. Pierrot acreditava que boa parte dos “cristãos” falhavam em ser cristãos reais apenas por ignorância – opcional ou imposta.
Ele não era a pessoa mais própria para responder aquilo. Ele sentia que ela deveria saber. E se sabia não entendia a razão de ela perguntar. Seria um teste?
— Eu diria que amor é devoção — disse ele simplesmente.
— Pode falar mais do que isso, por favor — ela o instigou com um tom levado na voz, percebendo que ele não diria mais. — Sei, apenas pelo seu rosto, que gostaria de divagar um pouco mais sobre isso...
Aquilo o divertiu. Era verdade.
— Não me entenda mal, mas o próprio Cristo se devotou à humanidade, ainda que primeiramente Ele o tenha feito a Deus — Pierrot disse. — Já ouviu pessoas dizendo que a igreja – todo os que creem – é a Noiva de Cristo?
Ela fez que sim.
— Ele a amou tanto que morreu por ela — explicou. — A cruz foi uma singular e até escandalosa, assim digamos, declaração de amor. E esse amor, aquele derramamento de sangue... deveria nos fazer chorar torrentes de lagrimas. Infelizmente, não nos devotamos a Ele como Ele se devotou a nós.
Aquilo causou um momento de silêncio. Ele não esperava por esse resultado. Aliás, ele não o pretendia.
— Quando amamos alguém demonstramos certa devoção — ele continuou na tentativa de trazer a conversa para o ponto qual ele cria ser o objetivo de Kális. — Há momentos onde nossos seres parecem implorar, suplicar, uns pelos outros, apenas para que seja sentido Amor. Para que ambos sejam completados. Sem orgulho. Sem humilhação. Havendo devoção sincera de ambas as partes... ambas confiarão. E confiando... se renderão.
— É tão belo que soa utópico, não acha? Soa... arriscado?
— E é — disse ele. — Mas se você consegue sentir a genuinidade do amor do outro seu medo se vai. Você entrega seu coração, seu pequeno bem mais precioso, e decide que pode confiá-lo a alguém.
— Mas e se esta pessoa falhar?
— Tenha certeza que vai.
— Então não é inteligente se fazer algo como se entregar...
— Então, se você chegar a pensar desta forma, não é amor. Claro que não deve continuar.
Aquilo provocou outro momento de silêncio. Ele não perguntaria a ela, mas não conseguia evitar um pensamento: aquela questão a vinha incomodando.
— Devo acrescentar que as pessoas que amam também falham — ele disse. — Você, Kális, falhará com que ama ou vai amar. Não quero focar no aspecto religioso, mas minutos atrás eu estava falando sobre Cristo ter morrido por Sua Noiva. Eu mencionei que a Noiva é a Igreja, Igreja que é composta de seres humanos, os quais são, em termos teológicos, miseráveis. Falhos. A Igreja nunca amará a Cristo na mesma medida em que Ele a amou, mas tudo bem. Ele a ama e sabe que, apesar das falhas, ela O ama também. Aqui chegamos a uma quase impossibilidade nos tempos modernos: o Amor Incondicional.
— O amor hoje é condicional — Kális disse. — Está atado a algo que possa ser oferecido em troca. Eu te amo “se” e não “eu te amo apesar de”. Não é?
Ele fez que sim.
— Amar alguém perfeito... talvez não seja amor — ela completou.
— Concordo. Além de não existirem pessoas perfeitas — ele lançou um olhar para ela, que sorriu, desviando o olhar para o ponto acima deles.
Onde estava o crucifixo.
— É. Existiu uma — ele se corrigiu, pensando na pessoa do homem representado no triste objeto.
— Queria não ter falhado com você — ela disse. — Você não merecia.
— Não carregue o fardo sozinha — disse ele. — Também tive minhas falhas.
— Hoje em dia eu não vejo assim — ela contou. — Acho que você foi o único que me amou. Em toda a minha vida, Pierrot. Bom, você me amava, não?
Ele, desde o inicio daquela conversa, teve medo de que aqueles rumos fossem tomados. Não queria. No fundo, por um lado, ele temia crer menos que ela nas coisas que dissera nos últimos minutos.
Apesar disso ele não era um mentiroso.
— Sim — ele disse, por fim, mas não se voltou a ela. — Creio em anjos e você era o meu. Acredito que pecamos e você era meu pecado mais doce. Você era meu sol... a minha fúria. Minha musa, minha luxuria e maior desejo. Tudo isto temos na vida humana... e era isso o que você era pra mim. Vida — suspirou ao dizê-lo, um tanto descrente de estar dizendo todas aquelas coisas. Daquela forma. Ainda existia o medo em seu coração, mas decidiu lutar contra ele a fim de dizer o que já queria ter dito antes, mas como uma declaração e não como uma lembrança, como agora o fazia. — Você se tornou o lugar onde eu queria me demorar, onde me sentia abraçado. Eu apenas desejava que você continuasse me cativando, me guiando para o seu mundo. Eu me “devotava” a você, desejoso de fazer parte do seu “reino”. Adentrar sua aura e espírito; sua alma e carne...
Pierrot fitava o crucifixo, mas se voltou para Kális antes de prosseguir:
— Já leu a parte da Bíblia que fala “por suas feridas fomos curados” ou “sobre si levou dor e transgressão”... “homem de dores”?
Ela fez que sim, os olhos um escuro oceano. Aquosos.
— Sua dor e feridas... eu as teria tomado para mim — disse ele enquanto fitava a profundidade daquele sublime par de olhos, as voltando-se para o crucifixo outra vez. — Eu teria, se necessário, aceitado se crucificado por você.
A verdade, Pierrot sabia, era que, apesar de tudo, ele ainda a amava...
Felipe R.R. Porto
Nenhum comentário:
Postar um comentário