Todos já haviam se recolhido, mesmo o sol já havia se posto. As sombras dominariam agora até que a próxima manhã chegasse.
“As sombras dominariam”, ele refletiu.
Diferente dos demais ele não se recolheu, tendo permanecido no parque, mas não fazendo malabarismos ou quaisquer outros números. Não era mais necessário.
Havia se sentado sobre um caixote recostado a uma das tantas tendas de vendas (tão comuns em parques como aquele). A vista à sua volta era composta de mais tendas como aquela às suas costas, um solitário e gélido - embora enfeitado - cipreste se erguendo quase orgulhosamente logo ao lado e ao fundo de tudo isso conseguia ver pequenos prédios mais afastados. Todos cobertos pelo manto escuro e espesso que era a noite que se lançava sobre a face do mundo. Imaginou mãos puxando este mesmo manto... uma mortalha.
“Ou as cortinas puxadas ao final de uma boa peça”, pensou Arlequim com um sorriso que não passava de lábios repuxados. O sorriso se foi logo, porém. “É claro que estou me referindo a uma grande tragédia”, concluiu ele relembrando o que outrora lera. Talvez tivesse sido como fora aquele dia... onde subitamente houve trevas.
Antes d“aquele dia” não se tratava de uma tragédia, mas veio o momento onde a imundície adentrou o lugar sagrado e, pouco depois, com olhos fechados e pesarosas almas o Homem e a Mulher eram expulsos do sublime jardim pelo seu Senhor. Um mão sacra apontara a saída e nesta eram deixados dois guardiões juntos, cada um, a uma aspada flamejante. Havia lembranças, então, belas lembranças, mas agora contempladas por olhares devorados pela corrupção.
A Tragédia.
Era um início, mas também era um fim. Embora não fosse “o fim”.
E então havia medo... e confusão - confusão esta que Arlequim viu levar alguns a verem um anjo às portas do Inferno e o Diabo nos céus. Entretanto, a pureza ainda sussurra, buscando atrair o ser humano. Ela certamente sabe que o decaído e imundo homem jamais a buscaria. Arlequim mesmo não negava a si tão estarrecedora verdade. Ele jamais o faria.
“Em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo... assim seja”. Ele não sabia onde encontrar esperança a não ser n’Eles.
Então, a ele a todos os homens só resta clamar para que o mais puro dos nomes lhe conceda alguma luz. E assim, só assim, ele poderá provar de seu sopro de vida, qual é efêmero, curto demais e então pedir que seja levado... “Ser levado”, meditou ele. Arlequim já o fizera tantas vezes; clamara por luz e a luz vinha, mas era doloroso quando dentro de si ele sentia que ele desvanecia. Então, para não mais provar das dolorosas trevas ele pedia por mais tempo. Não que houvesse luz demais sobre a face da Terra, mas para que buscasse se redimir, para que buscasse clamar e sentir que o fizera suficientemente. Quanto seria este suficiente? Talvez ele soubesse quando fosse o momento e, se dependesse apenas de sua humana vontade, clamaria para que pudesse ser varrido. Levado dali.
Uma vez proferira palavras que ficaram gravadas em su’alma. Foram simples, mas a simplicidade não fez com que definhassem. “Me deixe fugir com você”, ele clamara, mas lembrava-se da correção quase imediata que o assaltara. “Não, não fugir... eu regressarei com você, mas não, jamais com o Diabo.”
“Regressarei”, ele refletiu como se aquela palavra pudesse ser captada, sentida, por algum paladar ou tato misterioso que lhe habitasse a consciência.
— Regressarei — ele repetiu, agora vocalizando. Nada mais do que um murmúrio, mas que viera trajado de um lamento que ele não intentara. Elevou seus olhos aos céus de sombrio ébano, tão diferentes da alva neve sob seus pés. — Me deixe regressar com você... — ele pediu uma vez mais.
“Em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo... assim seja”, sua mente religiosamente repetiu.
Em tempos passados já lhe questionaram sobre o porquê de sua melancolia, dizendo, de forma acusadora, que sua Fé deveria livrá-lo de tal sentimento. No entanto, foi exatamente por causa da verdadeira e genuína Fé que alguns sofreram, enquanto havia casos que por causa da gananciosa e hipócrita Fé pessoas fizeram outras sofrerem...
Entendia que a Fé não o livraria das dores, mas o ajudaria a sobreviver a elas. Tinha ciência que definharia até a morte, plenamente consumido por seus medos e tristezas, caso não soubesse disso. Sim, havia angústia em sua vida, momentos de profundo desespero, mas teria sucumbido se seus olhos estivessem, ao invés de na brilhante estrela, focados nas trevas ao redor desta.
Ainda fitava os escuros céus, tão diferentes daquilo que notava durante os dias - mesmo os dias onde havia a mais densa nevasca. Havia certo desconforto nisto, mas a noite lhe trazia também bons pensamentos, pois nela ele via as estrelas, estrelas que ele não notaria durante o dia. Estrelas que precisavam das trevas para que pudessem ser vistas. Havia alguma esperança em seu coração. Acreditava que sem as penumbras da vida pudesse não ter esperança alguma. Por isso, cria, prosseguia.
No coração daquele jovem pulsava a maturidade acompanhada da melancolia. Maturidade, pois ele havia encontrado o que parecia ser a verdade; e melancolia, pois em sua solidão ele era o único, ou um dos poucos, que aparentemente via o que via.
Havia dias em que ele se questionava se estava sozinho, pois, mesmo não sendo cego, não via nada nem ninguém. Porém, talvez fossem somente seus olhos que não queriam mais ver as coisas fúteis e vazias. Houve momentos onde ele acreditava ter alcançado o ápice de seus dias, onde estes pareciam conduzir a melodia do canto fúnebre de sua alma, dias nos quais ele se perguntava se era realmente o momento ou se deveria ainda dizer algo às pessoas, mas... alguém ouviria o pobre e miserável palhaço e suas tragédias filosóficas internas? Alguém viria a dar importância à espiritualidade de um palhaço que, ao que se sabia entre as pessoas, ganhava a vida fazendo pessoas rirem e gargalharem? Temia que não fosse levado a sério.
Arlequim gostaria de fazer pessoas sorrirem. Ele possuía um apego especial pelo sorriso, pois a ele esta leve expressão de contentamento era muito mais profunda do que os audíveis risos e gargalhadas. Sorrisos sinceros traziam leveza, conforto... sorrisos sinceros curavam, motivavam... Risos e gargalhadas lhe pareciam tão finitos, mas não os sorrisos... para ele os sorrisos eram ecos que lhe soariam nas salas de sua memória até seu último dia.
Ele, então, sorriu. Sorriu sozinho na noite mais fria daqueles tempos invernais. O sorriso se foi outra vez. Quem daria importância àquilo? O percebiam além daquilo que interpretava? Quem realmente era para eles?”
Talvez o fim já tivesse chego e ele fosse um fantasma onde apenas os que o entendiam eram capazes de notá-lo e não somente vê-lo - e a diferença nestes aspectos é gritante. Contudo, se assim fosse, qual era o verdadeiro significado? Sim, deveria haver um propósito. Apesar dos momentos onde se encontrava profundamente deprimido, ele não era tolo o bastante para acreditar que tudo era sem propósito, pois o que ele fazia tinha um propósito e que sentido haveria em um ser sem propósito fazer algo com propósito? “Sim”, ele sempre concluía, “há, mesmo que simples, um propósito”.
Talvez o fim não houvesse chego para ele, mas para os outros, que haviam morrido, secado por dentro a ponto de serem tão mais frios e vazios. Talvez eles fossem os fantasmas. Talvez, então, fosse por isso que ele tanto se assombrava com aquilo que via.
Talvez não fosse ele o morto, mas elas, pois ele sentia dor tristezas e alegrias reais e mortos não sentem nada.
Nada...
... e tais pessoas assim lhe pareciam: não sentiam nada, imersas em seu eterno e constante repouso, a existência sendo sua constante celebração fúnebre.
Felipe R.R. Porto
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