Deixou as ruelas do parque quando ventos frios demais começaram a soprar. Foi para o pequeno trailer a ele reservado. Era simples e muito pequeno, mas era o bastante para ele. Arlequim jamais reclamou do veículo, não se sentia capaz de fazê-lo. A porta de entrada ficava na lateral direita deste e logo que esta era aberta se dava com uma cama - sobre esta se via uma caixa retangular negra. Para a direita, também no canto direito, havia um armário muito compacto e sobre este uma pequena televisão - a qual ainda estava ligada desde aquela manhã e ele não se importou em desligar, apenas alcançando um controle remoto e tratando de deixar o volume extremamente baixo, apenas o suficiente para que ele ouvisse caso algo interessante fosse pronunciado. Para a esquerda, onde era a traseira do trailer, estava uma janela de tamanho considerável com uma cortina feita de diversos losangos pretos e brancos. Abaixo desta estava um grande baú onde os pertences- roupas e objetos de uso pessoal- do jovem estavam.
Entrando, fechou a porta e sentou-se na cama ao lado da caixa. Jogou as quatro pequenas bolas para o lado, apenas para que logo depois as sentisse voltando para seu lado.
Levou uma mão à outra para começar a remover as luvas e se viu assustado, temendo que ao retirá-las não houvesse nada abaixo delas...
...apenas o vazio. “Tolice”, pensou.
Puxou subitamente a luva da mão esquerda e obviamente não encontrou o vazio, mas suas mãos jovens e cansadas, calejadas e levemente suadas ainda que estivesse fazendo frio.
Com as mãos livres ele parou, não retirando sequer seus sapatos, roupas, chapéu ou maquiagem. Viu-se estendendo suas mãos à caixa ao seu lado. Havia duas presilhas que a mantinham lacrada. Abriu-as com um leve estalido para ter seus olhos em um dos frutos mais preciosos de seu trabalho: um belo violino envernizado reluziu aos seus olhos fascinados.
Havia o comprado depois de pouco mais de um ano de trabalho com o circo. Havia sido uma compra inesperada aos olhos de alguns, mas muito esperada por ele.
Ao lado do violino havia um pequeno caderno e uma caneta que ele sabia que não duraria muito. Já havia gasto outro caderno semelhante àquele que agora tinha, mas havia o lançado fora. No entanto, guardaria o novo consigo e faria o mesmo com os que viessem em seguida. Havia feito tal promessa a si mesmo ao se arrepender de ter se desfeito do anterior.
Tomou a caneta e o pequeno caderno em mãos.
Respirou. Suspirou. O coração batia forte contra as costelas.
Começou a escrever. Mas não se tratava apenas de escrever. Nunca. Muitos possuíam formas de se livrar de alguns sentimentos e a forma da qual o jovem Arlequim se valia era a escrita somada à sua música...
No entanto ele se viu riscando a primeira frase escrita. Não lhe era o suficiente. Foi para a linha de baixo e novamente tentou, tal tentativa se baseando apenas na espera das palavras certas. Todavia, elas não vinham. Tentou novamente, desta vez escrevendo mais de uma linha crendo que em algum momento as palavras aleatórias o conduziriam ao ponto onde as palavras que precisavam ser escritas surgiriam e dariam, assim, sentido às primeiras.
Não conseguiu.
Angustia. Arlequim sentiu isso dentro de si, sentiu-a se agitar dentro dele, mas não para sair. Ela não queria isto, queria sufocá-lo como em todas as vezes que ele a sentira. Em todas as outras, contudo, ele foi capaz de expulsá-la pondo a maldita no papel, mas hoje falhava. Hoje as palavras o traiam.
E pouco depois ele chorava. Soluçava sobre as páginas do pequeno caderno, onde gotas salgadas e negras escorreram. Mas não, ninguém saberia disso. E os que sabiam... não se importavam.
E ele? Ele se importava demais. Sempre. Já ouvira que isto era seu problema, o sentir demais. O sentir muito. Mas, novamente, era quem ele era.
As lágrimas prosseguiam, mas ele se viu desistindo da escrita e logo lançava o caderno para o lado. Agora recorreria ao violino e neste depositara suas esperanças. Houve receio, houve insegurança. Houve medo, mas para sua surpresa e alivio, aconteceu algo diferente. Ele percebeu que não precisava de palavras naquela noite, precisava apenas das notas. Elas, diferentemente das palavras, não o abandonaram. Não falharam com ele. Não o traíram.
E os fios de crina do arco encontraram-se com as cordas do violino e dali notas surgiram, notas que ele sequer sentiu que precisasse seguir anotando enquanto tocava. Algo lhe dizia que aquela melodia, aquela chorosa composição que lhe acompanhava o pranto, não o deixaria mesmo que quisesse. E se foram vários minutos a tocando. Minutos que ele sabia que a excederiam quando, por fim, a anotasse. Ele apenas seguiu a repetindo várias vezes até sentir que era o bastante, que seu coração já havia vertido tudo o que verteria naquela noite. Até que mesmo as lágrimas que tivesse de derramar fossem totalmente derramadas no embalo da lacrimosa melodia.
Veio, finalmente, o momento de deixar que o violino voltasse para o conforto do estojo, o arco o acompanhando. Alcançou em seguida o caderno a ali depositou a composição, sequer precisando tornar a ouvir as notas do próprio violino. Já conhecia o instrumento bem o suficiente para que isso não fosse necessário, embora uma ou duas vezes se vira solfejando.
Apreciava, amava a música, mas queria, assim como tantos que ele admirava, fazer história através desta. Queria primeiro fazer música para si, como o poeta que escrevia para seu próprio alivio. Mas lhe era importante o poder consolar corações, poder motivá-los. Fazer-lhes companhia lhes mostrando que não estão sós - assim como ele sabia que não estava só em sua condição, apenas em sua localização.
Deveria haver mais alguém como ele. Talvez ali não houvesse, mas deveria haver. Em algum lugar do mundo, ou a algumas milhas de onde ele agora se achava, mas havia. Não havia?
Ele suspirou, não se esforçando demais em dar uma resposta àquela pergunta. Por fim, no topo das anotações, da partitura improvisada que deitara nas páginas do caderno, ele escreveu o nome da composição - o único que lhe pareceu apropriado a uma obra como aquela:
Lacrima Mosa.
Felipe R.R. Porto
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