— A alegria do Natal e a paz de Cristo reine no coração de todos os homens — a voz tinha vindo da televisão e mesmo ele estando ainda vertendo suas emoções os ouvidos de Arlequim captaram a frase, então ele se achou agora se voltando à tela. Alcançou novamente o controle remoto, agora fazendo com que os sons ficassem mais claros, aumentando o volume. Na tela ele via um senhor de aparência dócil e este falava a milhares e milhares de pessoas.
Entretanto, aquele fora o fim da reportagem, felizmente. Não foi capaz de ver do que realmente se tratava - caso fosse algo mais sobre o mencionado Natal -, mas ainda assim Arlequim fora atraído por ela.
— Como se já não bastassem minhas tristezas... — o jovem disse, em forma de lamento, devolvendo o violino de volta ao estojo, junto com o caderno de páginas agora levemente umedecidas e a caneta mais próxima ainda de seu fim.
Agora o palhaço descalçava os sapatos enquanto ignorava o mesmo sentimento que lhe viera referente às mãos antes de descalçar as luvas.
Deitou-se fitando o teto do trailer. A maquiagem – agora um tanto borrada – permanecia em seu rosto, mas ele estava distante naquela noite. Parecia não estar muito interessado em ver quem estava por detrás do pó branco e os lápis negros que lhe delineavam um ou outro detalhe. Para ele não havia diferença. Ele sabia o que havia por detrás da máscara de maquiagem, eram os outros que não.
Conta-se a história – ele relembrava – de um homem que nasceu cego, mas que queria ver o mundo, pois lhe falavam que era lindo. Sim, ele podia ouvir, mas somente ouvir. Um dia este veio a ver e viu o mundo e chorou, pois não era tão belo como esperava. Ele chorou diante da vaidosa hipocrisia, diante da falsidade do amor criado, não o amor que era genuinamente sentido. Ele chorou devido às tantas máscaras; máscaras para representar o Bem quando se tratava do Mal, para representar a Luz quando se tratava de Sombras. Máscaras de Vida, mas que por trás de si traziam a Morte. O homem lamentou, mas para que não notassem ele mesmo fez para si uma máscara de Alegria, mas por trás desta havia pranto.
— Lhe falavam que era lindo —, Arlequim repetiu para si mesmo em voz alta. Tantas coisas eram ditas, mas não havia verdade nelas. Diziam haver paz, mas não havia paz. Dizia-se que os tempos estavam melhorando e o ser humano evoluindo... mas ao menos Arlequim não via assim.
Contudo, olhe só, quem afirmava tais coisas era o próprio ser humano. No fim, na conclusão, jamais houve evolução, a não ser na torpeza do ser humano, que agora vê beleza onde antes não via e hoje vê ofensa naquilo que antes tanto defendia. Ou o inverso. Basta ser conveniente.
Há um nome para isso: hipocrisia.
A voz do herege ressoava dentro de Arlequim como se sua mente fosse um grandioso e profundo desfiladeiro. Os ecos se repetiam, se repetiam e se repetiam. Porém, em desfiladeiros os ecos felizmente em segundos cessavam.
— A paz de Cristo reine no coração de todos os homens... – ele citou para si mesmo agora. Como seria possível tamanho autoritarismo? Para a mente e para o coração de Arlequim a frase dita não se encaixava em seu declamador. Para alguns o tal homem se tratava de um santo sem pecados e um homem infalível. Este era o Papa. O Pai.
Depois de momentos de profunda angústia, solidão e tristeza, Arlequim agora se encontrava indignado. Seus olhos ainda miravam o teto do trailer, mas era como se pudessem ir além deste.
“Um santo sem pecados e infalível...”, ele pesou a frase e A Inquisição foi o primeiro evento que lhe veio à mente, anos sombrios nos quais o Catolicismo Apostólico Romano perseguiu e sentenciou à morte muitos inocentes. Haviam palavras de consolo ditas por esse tal Papa, mas palavras que foram ditas do mesmo modo que a serpente falou à mulher no Éden. A mulher a tudo tinha, mas ao ouvir à serpente a tudo perdeu, tendo se afastado tragicamente da Luz. Hoje ele, assim como a serpente, fala aos pobres, mas estes pobres são os degraus da torpe, mas sagrada, catedral construída com indulgências séculos atrás. São pobres, pois ele os fez pobres ou os mantem pobres. Muitos já estavam fadados ao Inferno, mas ao ouvirem aquele herege foram feitos duas vezes mais filhos e filhas do Inferno. Palavras duras, alguns diriam. Jesus foi quem as primeiro disse sobre os hipócritas de seus dias.
Arlequim via o “Vigário de Cristo” diminuindo a tragédia enquanto ela se alastrava como nuvens de uma má tempestade que rápida e inevitavelmente se aproxima – uma tempestade que irá destruir vidas, mas poucos sabem. E os que sabem e falam a verdade são mentirosos. O Herege os ensinou assim.
Arlequim seria um destes mentirosos.
Arlequim o via falar de amor, enquanto era o ódio que era semeado cuidadosamente nos corações – “e eis aí”, o jovem ator circense pensou com ironia, “o maldito joio se infiltrando em meio ao trigo.”
Arlequim o via envenenando almas, enquanto elas criam estar sendo curadas, mas se tratava apenas do torpor do momento. Elas morreriam logo. Pois ele deixará que elas durmam, que elas acreditem na segurança... na paz.
Arlequim uma vez lera as seguintes palavras do próprio Jesus;
“Mas se alguém fizer cair no pecado um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar. Ai do mundo, por causa das coisas que fazem cair no pecado. É inevitável que tais coisas aconteçam, mas aí daquele por meio de quem elas acontecem...”(Mateus 18.6-7)
— Oh, Papa, você foi longe demais — Arlequim disse outra vez em voz alta. — Lamento por sua alma...
Era lamentável o destino de tal homem, assim como também, por causa dele, era também lamentável o destino daqueles que o seguiam.
Tido como o senhor da igreja, mas jamais o será. Usa o nome santo de Deus para justificar suas ações torpes, mas essas ações torpes jamais o justificarão diante de Deus.
Herege. És o Papa... o Pai nesta terra.
Não, o jovem palhaço sabia, a vontade daquele homem e de tantos outros que vieram não se tratava da boa vontade de Deus, mas dos intentos terríveis de Satanás.
O coração de Arlequim ardia em profunda mescla de tristeza e revolta. Ele pedia perdão a Deus por tal sentimento. Pedia agora e provavelmente voltaria a fazê-lo, pois falharia outra vez.
Arlequim não negava já ter visto atos dignos daquele homem, não podia mentir. Porém se uma macieira der, em cada safra, duzentas maças, mas dentre estas apenas dez delas forem comestíveis, esta não se tratará de uma macieira que mereça permanecer dando frutos sendo que faz mais mal do que bem.
Arranquem-na! Cortem-na e a lancem no fogo! Pois o fogo é seu lugar.
Felipe R.R. Porto
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