quarta-feira, 22 de março de 2023

Solidão - Capítulo 1 : Lágrimas De Saudade


Outro crepúsculo se despedira cerca de uma hora atrás. O conhecido véu escuro da noite plena tomara com firmeza seu costumeiro lugar.

Outra vez parte do mundo estava sob seu domínio. As nuvens acima se estendiam em todas as direções, tendo lá permanecido ao logo de todo o dia que findara; um dia borrado por tons escuros – cinzentos e agourentos. Arlequim vira o mesmo céu dias atrás como se feito de rocha, hoje tivera um vislumbre mais específico, concluindo que este lembrava uma fria lasca de mármore, funesta e gélida.

        Estava desta forma já havia dias e Arlequim sabia que aquele clima ainda se estenderia por vários outros. A escuridão, de fato, acabara de cair. No entanto, já havia aqueles que preferiam recolher-se frente à exaustão e frente ao clima.

        Mas havia algo mais, ao menos para o exaurido palhaço, que vira seu dia envolto em um manto persistente de incertezas. De medo. E a noite seguia os mesmos pavorosos passos, enquanto os passos do palhaço o levavam pelos espaços entre trailers e tendas. Espaços agora praticamente desertos, senão por um colega de trabalho ou outro. Alguma fria corrente de vento conseguia serpentear por estes locais vagos, fazendo vibrar lonas ou fazendo tremular as bandeirolas que encimavam as tendas menores e aquela maior, onde os maiores espetáculos ganhavam lugar.

       Aquele lugar, normalmente separado para lazer e momentos de alegria, não era livre do toque da melancolia. Nada era. Ninguém era.

     Não há aqueles sem cicatrizes. Não há aqueles que se achem livres das dores. No entanto, sabe-se haver aqueles cujas feridas parecem recusar-se a se curar, a dor por elas provocada se estendendo sobre e através das paredes do tempo feito implacáveis ervas daninhas.

       Inúmeras vezes se vira prestes a sucumbir e inúmeras vezes ironicamente se vira rindo de si, do quão patético às vezes soara a si mesmo. Rira, mas lágrimas lhe banharam a face. Inúmeras foram as vezes em que desejara gritar consigo mesmo... Há quem afirme sobre o perigo dos inimigos distantes, mas não há pior inimigo do que aquele que habita as profundezas do próprio homem.

       Não há pior inimigo do que si mesmo.

     Fora tolo desde tanto tempo, mas a dor viera. Lancinante. A dor última, quiçá, de uma alma ferida. Assim, essa mesma dor, para esta mesma alma, trouxe lições. Assim surgira o racional medo do amor. Não soava sábio a seus ouvidos amar quando sua alma cruzara, a passos dolentes, a Via Crucis. O amor, então, fora o seu Calvário. Seu Gólgota. E lá ele fora humilhado, ferido, transpassado e morto.

     Estas lágrimas vertidas em silêncio se tornaram máscaras sobre seu rosto; a luz que emite sombras e obstrui a si mesma. Não, não há utilidade no esconder-se de sua dor. Há apenas mais dor. Voraz e avassaladora dor. Assim, lá ele permanece. Ainda de pé, lágrimas lhe escorrendo pelo rosto, mas aprendera que certos atos são tolices. Aprendera que deveria ser quem era, não quem obstruísse esse mesmo ser.

     Foi assim, Arlequim acreditava, que a noite então deu à luz seu filho mais jovem: um sonho. Um sonho de amor, um sonho de saudade – de anseio. Desta forma trata-se de um sonho apenas para os olhos, não para o deleite das mãos. Sendo o que é, é apenas um sonho para se meramente sonhar e jamais para ser vivido. Um sonho para os olhos, apenas para contemplação; o tesouro inalcançável, por isso também, uma vez mais, um sonho para as mãos. Ou melhor, uma ilusão para as mãos.

       Pobre filho da noite. Eis seu sonho de amor... de sua saudade.

    Contudo, esta criança, esse filho da noite, possuía olhos que até então não haviam realmente contemplado a beleza. Assim sendo eram fracos, limitados, para ser maravilharem. A luz gloriosa do sol nascente, então, não veio para este filho. Ele, agora se vê, era cego. A luz, tão bela, estava lá, mas não para olhos feito os dele. Cegos... talvez, de alguma forma, imaturos.

       Ele, no entanto, fora cego por muitos anos, mas não por não poder ver. Era cego por não ser capaz de admirar. Assim como existe a diferença entre o mero ouvir e o precioso escutar.

   Esta criança, esse estranho sonho, era ele mesmo. Ele, apaixonado pela noite, e alimentado pelas poéticas expectativas que nela aprendera a ver com o passar dos anos.

      Sim, uma criança, mas estes mesmos anos que lhe ensinaram o “admirar-se” também lhe mostraram que suas mãos eram velhas, eram calejadas pelo viver. No entanto, ainda que velhas, permaneciam intocadas. Talvez, apenas talvez, uma explicação devesse ser concedida. Entretanto, a única que poderia lhe ser dada estava perdida.

       Mesmo esta se achava perdida.

     Isto tornava suas lágrimas um amargo mistério; mas ele as vertia em silêncio, atrás da cômica máscara que passara a usar. Lágrimas de um anseio apenas sonhado, de uma saudade de algo ainda não experimentado.

Felipe R.R. Porto

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