sexta-feira, 31 de março de 2023

Solidão - Capítulo 2 : Olhares Passageiros

 


Olhares Passageiros

A turbulenta noite se fora, mas deixara lembranças de sua estadia. Arlequim dormira quando a Lua – vista parcamente e apenas uma vez em um momento de, talvez, misericórdia das arrogantes nuvens - se achava alta, a madrugada os abrigando. Não, não sentira sono. Concluíra que fora apenas vencido pelo cansaço e pelo tédio.

Esta derrota lhe conduziu a um sonho.

Neste sonho ele se encontrava em algo que provavelmente era um cinema. Teve confirmação disto quando notou a quantidade de cartazes expostos de forma costumeira pelos corredores. Porém, quando se atentou aos detalhes dos cartazes e ao que diziam foi tomado de assombro; um dos pavorosos cartazes anunciava a estreia daquela noite e era ele mesmo que vira retratado no fatídico anúncio. Viu-se retornando a outros cartazes e só então notava o propósito daquele cinema: exibir sua vida. Cartazes, cartazes e mais cartazes por todos os lados. Por mais que alguns deles não dissessem com ênfase ser ele o tema ele pôde reconhecer isso ao observar com afinco.

Observando um dos cartazes, qual era emoldurado e com uma peça de vidraçaria como proteção, Arlequim viu seu reflexo no cartaz. Os mesmos traços, a mesma maquiagem. Desviando a atenção do cartaz ele lançou um olhar por cima do ombro, percebendo assim que muitos olhares estavam sobre ele.

Aquilo não era um sonho. Era um pesadelo.

Ele, se afastando, às pressas procurou por uma sala. Caminhara de porta em porta, olhares ainda o perseguindo. Uma das portas chamou-lhe a atenção devido ao burburinho de vozes que vinha do seu interior – o que poderia fazê-lo se afastar se estivesse acordado, mas era um sonho. Tinha de ser.

Ele a abriu e vira o local apinhado de pessoas. Todos os assentos estavam tomados. Com exceção de um, ao qual se dirigiu. Nada menos do que um assento dobrável.

Sentou-se e olhou ao redor, sentindo o nervosismo lhe roer os ossos, lhe incomodar as entranhas, devido quão assombrado se achava com o número de pessoas presentes ali. Não deixou de acreditar, apesar de tudo, que não se tratava de algo real. Ele bem se conhecia: não iria a um local onde sua própria vida fosse exibida.

— Não, um sonho não – murmurou para si a conclusão de há pouco.  — Um pesadelo.

Destes não se consegue sair.

As luzes se apagaram. O filme se iniciou e o silencio humano que tomou o local era quase mórbido. Mais mórbido ainda foi quando memórias surgiram, o distante passado tendo vindo com elas, arrastado pela mão à força para dentro da mente de Arlequim. O passado que deixara de ser passado para estar em seu presente uma vez mais. Na imensa tela um estranho “eu”, o “eu” do passado – um fantasma – fita a face daquele em quem se tornara. Arlequim, no entanto, desvia o olhar, voltando-se, involuntariamente, para a multidão. Um sobressalto o tomou quando o grande salão é tomado por uma súbita explosão de risos. Gargalhadas. Alguns, ele nota, lhe lançam olhares, outros apontam o grande telão, onde algo cômico deveria estar sendo exibido. Arlequim reluta, mas logo seus olhos também se voltam para a sequência de imagens. O que ele vê? Um aleijado, quebrado, à deriva sobre as ondas.

Arlequim sente-se abatido, doente. Sente seu rosto arder, a vergonha lhe tomando de assalto. Ah, mas eles nada sabiam. Nada sabiam sobre ele. Não sabiam sobre as impressões do tempo sobre sua alma. Não, o tempo não fora tão generoso com ele como parecia ter sido com tantos. Ele, muitas vezes, chegara à conclusão que o tempo, para ele, se movia penosamente, como se este se arrastasse ao invés de caminhar. Seu tempo parecia estagnado, não notando ele nenhuma grande diferença entre o ontem e o hoje. Seu hoje, acreditava ele, nada mais era do que uma mera impressão do ontem. Seu hoje era uma estela onde tudo o que fora ali gravado... era o seu ontem.

Quando Arlequim volta a si ele percebe que, sem que notasse, havia baixado a cabeça, enterrando o rosto em pranto nas mãos agora úmidas. Quão imerso estava em tais pensamentos? Quão imerso estava em sua ruína? Olhando para as mãos nota manchas escuras nelas. Teve medo de imaginar como seu rosto estava naquele instante...

Na enorme tela a cena parecia prolongar-se. Aleijado. Quebrado. Ele sabia as razões, ele se lembrava daqueles dias. Lembrava-se que questões lhe assombravam; questões sobre os mistérios da Vida e Morte, seus significados... Aquilo o assombrava, o feria e o lançava sobre as vagas da dúvida, do sofrimento. Da dor. Agora, contudo, era diferente. Ele não tinha todas as respostas, mas sentia que tinha respostas o bastante para buscar prosseguir. “Hoje eu sei a resposta”, pensou ele, sobre uma pergunta em particular, “naquele tempo eu não sabia...”

“Eu tomei a decisão errada”, ele conclui intimamente, sua consciência sendo a única que o escuta.

Nova torrente de risos surge, expulsando seus pensamentos por um instante, enviando-os para os confins de sua mente. Arlequim, no entanto, não dá atenção ao que as telas mostram neste instante, sentindo apenas o impulso de se retirar. Às pressas ele o faz, levantando-se rapidamente e galgando feroz as escadas que o separavam da porta de saída. Suas entranhas, comovidas pelo intenso nervosismo, reagem, e sob o olhar de alguns ele sucumbe, caindo de joelhos sobre o carpete, arfando.

Aqueles olhares... aqueles mesmos olhares. Não, ele não sentia apenas vergonha, ou nervosismo. Sentira algo mais: sentira ódio. Diante daqueles olhares ele se perguntou, enquanto se levantava e buscava se recompor, se mesmo ali, na luz, ele poderia ser reconhecido. Se o fosse... ririam dele outra vez? Desejou que todos eles se retirassem. Que se fossem e vivessem suas vidas, deixando a dele. Era sua vida. Sua própria e intima vida! Eles não tinham o direito de agir como agiam...

No entanto, ele estava em um pesadelo. Não conseguia sair. Era decepcionante que mesmo desacordado ele permanecia assombrado. Era frustrante que seus sonhos se esvaíssem tão facilmente, feito algo lhe escapando por entre os dedos, e seus pesadelos fossem soberbos e resistentes. Imponentes.

Ele se levanta, cruza o corredor até a saída, mas estaca diante das portas, nada mais que vitrines. Lá fora uma multidão de pessoas aguarda para entrar. Arlequim balança a cabeça, sentindo seu corpo começar a refazer o caminho de volta. 

De volta para a sala onde tão constrangedora obra era exibida. Porém, quando ele volta e procura seu assento vê que este não estava mais vazio. Ele não reage, mas senta-se no chão, em um dos degraus e encara com firmeza a tela. Sim, era sua história. Seu filme. Não obstante, ele desejava saber o que aconteceria, qual seria o final de tão hedionda obra. “Eu ainda não sei sobre meus pecados... onde exatamente errei”, refletiu ele, pensando também que a ignorância não seria tão ruim. Há coisas que devem permanecer desconhecidas.

Era o filme de sua vida, mas ele não esperava muito. Aliás, esperava apenas que logo viesse a morrer, assim sendo, ele não teria de carregar o fardo que vinha carregando por tanto tempo.

— Me desculpem se minha vida perturba alguém — ele se viu dizendo em voz baixa. — Ao menos ela serviu de inspiração para um filme que as pessoas gostam.

Ele não esperava que alguém ouvisse, mas olhares se voltaram para ele, o repreendendo. Estava errado. Constrangido por estes mesmos olhares ele se voltou para a tela, onde era exibida uma cena estranha de se ver: sua morte.

Novamente há risos na sala e ele se pergunta, ainda assim, se seus risos de dor no ontem teriam relação com tal momento...

Novamente alguém está rindo do filme ali exibido. A gargalhada ecoa, quase podendo ribombar contra as paredes do escuro salão. Arlequim outra vez percebe olhares, aqueles malditos olhares sobre ele, mas neles não havia a mesma repreensão de antes. Havia horror. Estavam chocados.

Quem ria, quem gargalhava, era o próprio Arlequim.

Felipe R.R. Porto

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