...mas ele não passaria por tudo aquilo novamente. “Prefiro morrer”, pensou ele, um tanto quanto amargamente.
— Já volto — Kális disse, um tom perene na voz, se retirando. Pierrot acompanhou-a com os olhos enquanto se juntava a um pequeno grupo no início do corredor pelo qual vieram. Não duvidava que fossem seus pais e familiares. Não duvidava também que vieram à sua procura para partirem e, havia uma boa probabilidade, para a repreenderem.
Pierrot deu as costas para a cena, voltando a ser imerso pelos pensamentos recentes.
Sua mente, naquele instante, buscava fitar o passado, mas este estava cinzento, como se uma espessa névoa lhe turvasse a visão. Era uma espécie de defesa que surgira com os tempos, anuviando sua perspectiva a fim de que não se ferisse. Um mecanismo.
Havia muito que ele mesmo gostaria de compartilhar com Kális, mas eram palavras duras que, mesmo o mero pensar o deixavam levemente nervoso. Não, aquelas palavras jamais deveriam ver o mundo. Deveriam permanecer com ele. Permanecer nele e, se necessário, ir para o túmulo quando seu corpo cansado finalmente para lá fosse.
Seu silêncio, então, era necessário. Palavras podem ser distorcidas. A serpente distorceu as palavras de Deus. Pierrot queria escapar da possibilidade de ter as suas distorcidas por humanos. Sim, Kális era sua amiga, razão pela qual devesse confiar mais nela. Correto?
Ele não tinha certeza. Não mais.
A conhecia bem demais. A maldita memória permanecia lá. A amizade é um belo laço, mas pode, em circunstâncias, se tornar um escudo inconveniente. O amigo sabe demais, conhece demais, mas quando a amizade se concretiza? Amizade é sempre estar junto? Amigos sempre concordam? Amigos... mentem? Ao longo dos anos o medo se enraizara vigorosamente em Pierrot tal qual uma planta parasita o faria a uma dríade, a adoecendo. Ele não conseguia evitar. Não era forte o suficiente. Não confiava. Todos os seres humanos, em sua ardilosa forma, em momentos soavam tal qual inimigos.
Amava a Kális, admitia. No entanto agora temia que tal sentimento fosse apenas uma cortina erguida por alguém que o apunhalaria através dos tecidos. Ele não perceberia o golpe vindo. Não reagiria.
Aquele era um dos infames momentos onde o que pensava não se alinhava com o que professava crer. Seus olhos novamente se alinhavam com o crucifixo à frente.
— Amor sacrificial — disse ele, um suspiro sendo liberado em seguida. Pareceu doer. — Consigo amar, Senhor. Contudo, consigo me sacrificar?
Ambos sabiam que não.
A presença de Kális naquela noite viera como uma neblina intensa, tal qual aquela que repousa densa em baixios úmidos e frios – densa e quase palpável. Parte dele ansiava pelo passado. Profundamente. Ali, em silêncio na gélida e imaginária neblina, ele conseguia ver algo; apenas contornos, silhuetas, mas era o bastante. Ali ele pôde ver, como se sua memória tivesse se tornado matéria.
Seu passado se tratava apenas de ruínas. Nada mais.
Medo. Medo. Medo. Apenas isso havia ali. E uma insignificante fagulha de esperança. Essa fagulha o fez querer se adiantar na direção da neblina, adentrá-la. Ver se lago jazia em suas entranhas, além das silhuetas.
— Quem sabe — ele disse para si — não há alguma beleza entre os escombros? Quem sabe se lá não encontro minha deusa, minha Vênus singular, da qual conhecerei toda a plenitude?!
Seu coração pulsara forte. Firme. Ele se vê estendendo uma das mãos para tocar as ruínas, mas a recolhe rapidamente em seguida, sua face se distorcendo ao mero pensar, o mero recordar-se da dor.
Ele recolheu a mão como alguém que, hipnotizado, mas agora desperto, vira-se prestes a colocar o braço dentro da terrível toca de escorpiões.
— Eu prefiro morrer! — disse Pierrot entredentes, toda a paisagem se dissipando e ele se vendo novamente na igreja cada vez mais silenciosa.
Ouviu passos às suas costas. Virou-se em tempo de ver Kális retornando.
“Vênus...”, sua mente cantou. Lá, nas profundezas, nos corredores das galerias, ele pedia por ela. Se ela lhe verdadeiramente lhe pertencesse a ela se dedicaria, estaria sempre à espera dela para se dedicar a ela, apenas a ela e plenamente a ela. Ele se devotaria a ela tal qual um fervoroso acólito, feito aqueles que em suas fés se prostram diante de seus deuses. Pediria por mais dela, a despiria a fim de conhecer sua sacra essência em profundidade. Prometeu, conta o mito, fora atado a rochas, e Pierrot sabia que se ataria ao enlevo pálido dos seus seios, alvos como o frio e elegante mármore. Ele se submeteria apaixonadamente a ela, se esconderia sob suas asas... Lembrara-se de dias em que entregue à imensidão de seu sentimento viu-se indagando se era ela uma deusa pálida ou apenas um comum ser humano. No fim não importava, pois seu âmago pedia por mais dela, por mais da sua presença...
Se ela fosse a personificação de um abismo ela pediria para que ela permitisse que ele caísse em sua vasta imensidão...
Ela parou diante dele. Sorriu. O mais belo sorriso que já vira. Ao invés de torna-lo ainda mais imerso em seus pensamentos, isto o fez despertar, rejeitando cada singela tentação.
“Não”, ele disse mentalmente, sorrindo de volta para a bela diante dele. “Eu prefiro morrer a viver tudo isto outra vez.”
Felipe R.R. Porto