A cidade estava um tanto movimentada. Um sino repicou mais adiante. Ele sabia de onde vinha, embora não avistasse ainda o local. O sino prosseguiu repicando enquanto Arlequin testemunhava um fluxo cada vez maior de pessoas se arrastarem na mesma direção. Isso confirmava sua suspeita de que provavelmente uma missa seria celebrada em pouco tempo.
Não importava, porém. Não fazia diferença. Fazia? Ele não pode conter o impulso de elevar seu olhar contra as nuvens cinzentas daquele dia. Seus olhos, no entanto, não queriam apenas fitar o céu. Eles procuravam uma resposta.
Tal resposta, ao menos naquele instante, não veio.
Arlequin avistou mesas dispostas em frente a um prédio simples, mas de aparência reconfortante. Possuía dois andares e um toldo cor vinho se debruçava sobre as cadeiras antes mencionadas. O local não parecia apenas um restaurante, mas um hotel. Isto fez com que logo quisesse parar, pensar e decidir passar a noite ali.
O restaurante, conforme Arlequin se aproximou, revelou ter como especialidade “massas”. Curioso, mas isso não era um detalhe que fosse relevante quanto sua permanência ou partida. Logo ele conseguiu um quarto para si, sentindo certa urgência em tomar um banho e se livrar da maquiagem e roupas. Deveria tê-lo feito antes, mas não conseguira. Esperava fazê-lo agora – bastava a forma como o olharam quando adentrou o restaurante que, apesar de simples, ainda conseguia ser requintado, boa parte da mobília sendo feita de mogno reluzente.
Ignorou os olhares, entretanto.
Já no quarto lhe cedido ele percebeu que não tinha mais tanta urgência em procurar um chuveiro. Ao invés disso ele quis aproveitar algo que o quarto lhe fornecia: havia uma singela sacada dando para a rua por onde viera e por onde as pessoas prosseguiam sua romagem. Havia uma amurada sobre a qual se debruçou, apoiado nos cotovelos, enquanto seus olhos acompanhavam as pessoas passando e, pouco depois, ele percebeu que podia avistar, dali, a tal igreja. Era uma capela, apesar de robusta. Sua formação não sugeria uma nave trabalhada como em catedrais, mas uma rosácea gótica demarcava a fronte, esta encimada pela costumeira torre pontiaguda, qual, sobre o telhado cônico, abrigava o sino, cujas badaladas ecoavam, eminentes.
Arlequin, voltando sua atenção para as pessoas transitando pouco abaixo, notou que algumas o olhavam com estranheza. Estranheza virou assombro quando ele sacou seu maço de cigarros e de lá tirou um – o último – e o acendeu. A fumaça lhe encheu os pulmões e depois se encontrou com a brisa fria, sendo levada para a direção da qual ele viera pouco tempo atrás enquanto ele via expressões horrorizadas de algumas pessoas, homens, mulheres ou crianças. Ele entendia o assombro. Ele era um palhaço afinal. O que ele esperava?
Ele possuía uma resposta: esperava que fosse visto como mais do que isso.
Ele suspirou, pronto a levar o cigarro outra vez aos lábios, mas estacou antes que isso acontecesse. Lá embaixo ele a viu. Quanto tempo fazia? Aqueles cabelos negros demais lhe caindo sobre os ombros em uma cascata escura, mas reluzente como obsidiana. As vestes eram claras. Alvas. Ela não o vira. Ele não esperava que ela o fizesse. Ainda assim sentiu que estremecia, sentia que as palavras em seu interior, se é que isto era possível, falhavam. Apesar do tempo, dos anos, as palavras ainda estavam lá, repletas de esperança, mas também de medo.
Lembrou-se de anos atrás, quando aquele belo resto emoldurado em fios escuros estava diante dele, olhos também negros que o fitavam com afinco, quase capazes de lhe perfurar a alma. Ela viera a ele dizer que talvez não fosse certo prosseguirem... Não fora o dia mais sombrio de sua vida, mas via-se, desde então, sem amor, vazio e enfermo. Parecia sangrar continua e copiosamente. Exausto.
— Mas — ele se lembrava de ter dito — seu amor ainda corre em minhas veias, ainda me aquece. Me mantem vivo. Eu sei que posso ter estado distante, mas não estou morto. Não estou...
— Pierrot... — ela começara, mas a memória se fora em um instante, como a fumaça de seu cigarro minutos atrás. Arlequin se viu, então, desperto, mas a bela já se afastava, a multidão começando a minguar e a noite a cair, suas sombras agora caindo mais espeças. Ao longe Arlequin viu relâmpagos, trovões poucos segundos depois.
Tragou do cigarro mais uma vez, o calor da brasa já lhe lambendo os dedos. Suspirou, assistindo a fumaça partir e as memórias tentando voltar. Anos haviam se passado e a voz dela ainda era tão vívida, o toque de seus lábios ainda tão presentes. Ele sabia quantas trevas havia em si, mas naqueles dias ela era a luz que amenizava a presença da penumbra. Era tolo, mas ele ainda a amava...
Ele deveria? Talvez não. Provavelmente não. Deveria apenas prosseguir. Ainda assim havia nele o desejo de conhecê-la melhor, visto que sentia que não havia feito isso como deveria. Queria conhecer sua essência e chafurdar nas vagas desta; se perder nas águas do mar que ela era. Em toda a sua beleza, todo seu brilho...
— Este é seu castigo, meu caro — ele disse para si, tentando soar conformado. — Seu castigo: ter o mais belo tesouro deste mundo e não poder tocá-lo. Ela está logo ali, mas... onde ela está?
Há quem diga que tal pergunta não faça sentido, mas não há quem diga que é impossível ser só na multidão.
O cigarro em seguida se apagou, as cinzas caíram sobre o toldo e foram levadas pelo vento que ganhava força. Se apagou, seu calor definhou assim como a esperança de Arlequin – lhe escapando por entre os dedos feito areia. E, então, indo-se a esperança, permanece o desespero.
Permanece o pandemônio em calma alma. Calma, mas onde os sentimentos são perturbadoramente ruidosos. Há o amor, mas mentiras se entrelaçam a palavras de afeto. O relógio da vida, um cacofônico pêndulo, muda, permanecendo as mesmas malditas memórias. E, apesar de tudo isso...
— Eu ainda a amo — ele concluiu ao sentir os primeiros flocos de neve recomeçarem a cair. Frios. Tão frios. — Temo as falhas. Há este medo, mas ele parece incapaz de extinguir a saudade.
Arlequin, por fim, decidiu pelo banho, a exaustão e a angustia se abatendo sobre ele. Lá, enquanto a água o lavava, ela escorria em tons esbranquiçados, também em cinza e preto, o ralo engolindo o palhaço em si.
Cerca de trinta minutos depois Pierrot descia para o restaurante. Olhos o fitaram, mas como se não o tivessem visto antes. De fato não o haviam visto, de certa forma. Haviam avistado um palhaço em vestes quadriculadas em preto e branco, trazendo duas malas consigo. Agora viam um rapaz que calçava sapatos pretos, suas calças sendo da mesma cor, um belo paletó escuro – sobre uma camiseta mais clara – embora não preto ou requintado, lhe protegeria braços e peito da friagem da noite que prometia trazer mais neve. Os cabelos pretos fartos ondulavam graciosa e naturalmente. Longos, mas longe de chegarem aos ombros, adornavam as expressões do rosto jovem, mas melancólico do rapaz.
Pierrot ignorou os olhares e procurou um lugar e lá se sentou. Escolhera uma mesa com quatro lugares à beira da janela, de onde ele podia ver a neve continuar a cobrir as ruas.
— O que vai querer, jovem senhor?
Pierrot se virou de súbito, sobressaltado com a recém chegada presença do garçom; um homem que parecia estar chegando aos seus quarenta anos. A vestimenta era simples, mas elegante, se tratando de caças pretas e uma camisa social branca. Vestes leves permitida pela presença certa de um aquecedor no local.
O homem não repetiu a pergunta. Pierrot, então, agarrou o Menu que apenas agora notou ante ele e o folheou. A presença do garçom logo tornou-se incômoda, deixando o jovem nervoso – nervoso o bastante para que se visse incapaz de escolher.
— Me sugere algo?
— Temos, especificamente hoje, um macarrão que ficaria ótimo se acompanhado de uma taça de vinho — disse o homem. — O senhor também poderia escolher algo para a noite que prossegue esfriando, como uma sopa de legumes...
De tudo o que o homem sugerira o que saltou em sua mente foram as palavras “taça de vinho”. Isso fez com que ele optasse pelo macarrão, ainda que a sopa tivesse lhe soado atraente.
O homem saiu. Pouco depois um rapaz – pouco mais jovem que o próprio Pierrot – se aproximou com uma travessa prateada reluzindo, logo depositando uma travessa menor com várias torradas. Um leve aperitivo. Pouco depois depositou um recipiente menor, ainda lacrado, onde Pierrot pôde ler o nome “Bresso”.
Ele franziu o cenho, cético, enquanto uma torrente de lembranças lhe vinha à mente. Ele não quis dar espaço a elas. Buscou agir como se elas não estivessem lá, à espreita. Sem pensar demais ele alcançou o queijo, rompeu o lacre, o destampou. O cheiro lhe chegou inevitável – fazendo sua boca salivar e seus olhos marejarem – enquanto ele também alcançava uma das torradas e com uma espátula que descobrira junto da travessa passou o queijo nessa e comeu.
Era delicioso, como lembrava que era. Porém, ele não foi capaz de não sentir também um gosto levemente salgado no canto dos lábios, constatando que uma solitária lágrima conseguira escapar de seu controle. Em um mero instante estivera absorto e ela lhe escapara. Mas quão absorto alguém deveria estar a ponto de que lágrimas não sejam notadas? Ele não tinha uma resposta. Tudo o que lhe acometia era colheita de semeaduras passadas. Isso, ao invés de uma resposta, lhe trazia outra pergunta: ele seria capaz de dizer adeus à tudo aquilo – fosse bom ou ruim – que havia o transformado em quem ele atualmente era?
Pierrot suspirou, a garganta desejando trancar enquanto ele decidia não se render ao pranto; enquanto ele sondava seu interior em busca da resposta que ele sabia que deveria encontrar, mas, até então, não conseguia fazê-lo.
Alcançou mais uma torrada. Repetiu o processo enquanto aguardava o prato principal. A pequena e ressequida fatia de pão somada ao queijo formavam algo ótimo, claro. Todavia, infelizmente, aquela acabara sendo a refeição mais triste, e mesmo mais amarga, que já tivera.
Felipe R.R. Porto