Pierrot despertou em um sobressalto, as coisas que vira no estranho sonho (ou pesadelo?) ainda presentes demais em sua mente.
Estava em um local escuro o que, devido ao que se recordava do sonho, o fez seguir imaginando a narrativa Dantesca. Relembrou O Limbo, o local destinado aos pagãos ditos virtuosos. Lá tudo era a mais plena escuridão. Lá não haveriam os horripilantes gritos de dor das almas. Lá, ainda que em dor, só se ouviria seus suspiros...
Quanto do que se lembrava era sonho? Quanto era verdade? O frio? A angústia? Aquela mulher... realmente a vira? Não sabia dizer, visto que pouco depois sua consciência o abandonara. Ele chegou a crer que não fora apenas a consciência, mas tudo o que era, tudo o que o mantinha vivo.
Creu que seria tragado para a imortalidade. Para o além. Não o fora, porém.
Havia retornado. Continuava no mundo qual chamava de lar. Se ele chegou a ser apenas uma “alma”, agora tornava a ser uma “pessoa”. Não iria para as regiões etéreas quais olhos humanos não podem ver – não podem contemplar.
Seus pulmões se encheram dolorosamente enquanto respirava. A dor. Certamente fora aquilo que o levara até ali, onde se encontrava. Pensou se seria o cigarro, mas concluiu que seria equivocado acreditar nisso. Fumava, mas não tanto e também não há tanto tempo. Certamente que fora alguma outra coisa.
O frio. O Inverno... mas principalmente aquilo que o fizera permanecer lá, congelando.
Os olhos do rapaz estavam abertos, mas muito pouco era visível. Era um quarto, ele não teve dificuldade em concluir, mas não se importando em se ater aos detalhes do lugar. Havia algo mais urgente, algo que insistia em lhe tomar a mente: estava vivo. Era uma conclusão extremamente simples, mas que estava tendo um efeito inesperado sobre ele.
Desejara morrer nos últimos anos. Assim, ele pensava, findaria suas angustias. No entanto, ter “ido e voltado” – ele não se sentiu mal por pensar assim – lhe acendera o desejo de viver novamente.
Ali estava ele, em seu escuro e estranho Gabinete Dos Sentimentos. Sim, de fato poderia tratar o local assim. Tanto sentira ali em alguns poucos minutos. Tanto já havia pensado ainda que não tivesse sido tragado para uma reflexão longa e cansativa. Houve medo, houve dúvida. Houve angustia, dor e uma torrente de lembranças. E houve alívio. Houve mais, tudo se unindo e o fazendo pensar, pensar e pensar... Não era necessário ter mais tempo do que tivera. O mero sentir das ondas lhe chegarem aos tornozelos já era evidencia o suficiente de que o mar estava diante de si. “Eu estou vivo”, ele pensou e foi sua última lembrança antes de ser tragado por um sono inesperado, mas que aceitou de bom grado, se entregando à atração deste.
Quando despertou o local, seu Gabinete, antes escuro agora estava iluminado o suficiente para que seus olhos doessem. “Escapara d’O Limbo?” Sua mente automaticamente exigiu saber, ainda mantendo Dante em vista. O local possuía paredes claras demais. A luz que pendia do teto parecia ser refletida por estas, fazendo com que visse borrões em padrões de branco e azul translucido. Uma forma vestida de branco estava à sua direita. Um médico? Aquilo o fez lembrar-se de um sonho. Aquele estranho sonho que tivera dias atrás, onde morria sem que ninguém o ajudasse. Um grito de ajuda sentenciado a não ser atendido...
Os olhos de Pierrot, já acostumando-se ao ambiente, deixaram a figura agora já óbvia do homem revelado ser de mais idade e migraram para uma de vestes escuras á sua esquerda. Possuidora de uma beleza quase desumana e de olhos verdes que o fitaram naquele lugar de um branco reluzente.
E renuncia.
Seus olhos novamente se fecharam, a escuridão da inconsciência caindo sobre sua visão, engolfando tanto o médico quanto a mulher de traços suntuosos... e ele sonhou com ela.
Lá, em seus sonhos, uma paisagem escura à beira mar, como se aquelas águas estivessem iradas e, em breve, após a preparação, ondas terríveis fossem vir sobre os litorais. Pierrot estava descalço, os pés afundando levemente na areia anormalmente fria. Seus cabelos ondulados à influência do vento.
Um vento que parecia gemer.
Naquelas mesmas areias, alguns metros à sua direita, ele avista uma forma feminina trajada de vestes tão negras quanto a noite abandonada pelo luar e ainda encoberta por espessas nuvens.
Ter despertado trouxera a Pierrot alguma esperança, mas ali, diante dela, era como se esta mesma esperança fosse tragada. Era como as ondas que vinham e na volta levavam, pouco a pouco, algo consigo.
Ele sentia o mesmo quanto àquela pequena luz antes bruxuleante em seu coração. A vela antes evanescente agora ele descreveria apenas como fraca. Pequena, mas não diminuía ou ameaçava se apagar.
Ela, aquela Escuridão, aquela figura, parecia almejá-la também.
Ela, a Escuridão, era tal qual a morte perante os homens, perante a vida. Ela tiraria suas esperanças e deixaria, após também retirar a luz, tudo envolto em surda penumbra. Esperança e Luz. Ela se alimentaria dele e viveria, viveria e viveria. Aquela estranha figura, cuja escura aura intentava juntar-se às enferrujadas nuvens acima, queria vida. Talvez, como maioria dos que ele conhecia, vida eterna.
Nos olhos dela, enquanto os ventos lhe provocavam calafrios, Pierrot percebeu-a ciente quanto a seus efeitos sobre ele. E percebeu mais: ela queria que ele soubesse quem ela era. Quem ela verdadeiramente, intimamente, era. Algo o fez sentir que, estranhamente, ela não quisesse lhe ferir ou fazer mal. Como saber? Como chegar a tal conclusão depois de tais imagens?
Ela, a Escuridão, qual teria sido capaz de fugir dos gloriosos raios do Sol e deles teria se escondido. Confiaria nela? Ela, que, na sequência daquele sonho perturbador, desfraldou ardentes asas e se ergueu naquela paisagem pintada com cores escuras – como uma pintura feita sobre uma tela já cinzenta. Ele, por um momento, olhou na direção das ondas, seu olhar como o de quem vê algo ao longe... Pierrot acompanhou-a, ainda que estivesse com seus pés sobre a areia e ainda que fosse provavelmente impossível avistar o que ela avistava. Ela pousou sobre rochedos contra os quais as ondas arrebentavam.
Ele quis ir até ela. Quando perto ele sentiu medo, temor. Dúvida. Agora que ela se afastara, ainda que pouco, ele se via atraído por ela. Sombria, mas de alguma forma radiante como as estrelas e ele, naquele sonho, se viu incapaz de resistir ao impulso de buscar alcançá-la. Assim, imerso no sonho surreal, Pierrot achou-se sucumbindo àquele singular irradiar...
...e pouco depois ele, ainda sem saber como, estava nos braços dela. Ela chorava enquanto o deitava nas areias frias daquele litoral.
Os olhos dela – marejados olhos – eram verdes. Ali, então, ela o deixou antes de tudo escurecer outra vez.
Felipe R.R. Porto