Foi ainda com o "bipe" prolongado lhe assombrando a alma que despertou. A face banhada em suor, a respiração ofegante e o coração batendo rápido como jamais havia feito.
Lá fora, notou quando seus olhos involuntariamente correram para a direção da cortina, o dia clareava. Podia-se ver a claridade mesmo com esta tapando a vista, esta escapando levemente pelos cantos do tecido preto e branco.
Fora um pesadelo; as imagens horrendas e estranhas das duas entidades, Solidão e Saudade – ele se lembrava – ainda vívidas em sua mente. Não fosse o bastante as figuras agourentas gravadas em seus pensamentos ele também ouvia, em um ir e vir, o fatídico som do aparelho que acompanhava os batimentos cardíacos no angustiante sonho. Mas não eram apenas os “bipes-bipes” que lhe torturavam, mas a última sequência, no qual um dos “bipes” se prolongava como uma trombeta cômica, um silvo irônico ante a morte do palhaço. Estremeceu.
Nada mais do que um pesadelo, todavia. Era isso, ao menos, que dizia para si.
Ainda assim havia o medo, qual Arlequim tentou afastar de seu coração. Sentiu frio. Perguntou se haveria distinção entre ele e o palhaço que fingia ser, pois, em certos momentos, um assombrava o outro; talvez ambos vivos, mas talvez ambos fantasmas, drenando um ao outro. E um deles, quem sabe, estaria morrendo e fosse disso que o sonho talvez se tratasse...
Buscou, ao levantar-se, se esquivar de tais pensamentos, mas era inútil, visto ser possuidor de um coração faminto por respostas. Sua alma agora o assolava com dúvidas. Assim, sabia que não se desvencilharia destas. Como tantas vezes já acontecera, fazendo com que a dúvida se tornasse uma companheira frequente de seus dias.
Entretanto, todo ser humano possui dúvidas. Arlequim, porém, não poderia dizer se eram severas como as suas, ao mesmo passo que poderiam sim haver dúvidas mais severas que aquelas que lhe açoitavam a consciência.
Como, todavia, ele gostaria de dançar em tal momento ao invés de fugir do constante medo. Como ele gostaria de simplesmente ser feliz, como quando era criança e apenas desejava os momentos onde poderia correr e brincar; momentos onde as preocupações da alma não o afligiam. Ah, como era doce o sabor das lembranças... como os algodões doces que no próprio circo ele mesmo já provara. Tão doces. Porém, elas, as lembranças, se tornaram pó, areia em sua boca. Apenas serviam agora para lhe dizer que não voltaria, quem sabe, a provar daquela doçura.
Pobre Arlequim...
Entretanto, ele conhecia seu estado, sua situação: estava só.
Mas ainda que só ele persistia contra aquilo que se opunha a ele. Se agarrava firmemente aos dourados pensamentos juvenis; pensamentos de quando se podia rir e brincar durante o dia e outros onde podia sentar-se, lamentar e chorar durante a noite quando já não se podia fazer o que era feito durante o dia, pois as sombras haviam chegado.
Os tempos de criança são tão incompreendidos, tão doces, mas apenas entendemos a doçura deles quando se percebe o quão amargos podem ser os anos seguintes. Anos que, quando criança, se almeja com ingênua veemência, mas quando chegam a adaptação às vezes vem com relutância. Não por imaturidade, mas por maturidade. Se sempre houvesse maturidade nos devidos momentos a imaturidade seria como sol e neblina em dias frios: um não pode suportar o outro por muito tempo.
Que anos são estes?
Anos nos quais a beleza é amplamente procurada, mas o que se encontra são vermes rastejando na imundície de sua vaidosa existência. Doentes. E ali ele também se encontrava. Não, ele não era um verme como eles, mas não deixava de ser um.
Ali, naquela manhã, as lágrimas fluíram outra vez, mas devido a funesta e triste existência. A dor o feria, o preparava para a morte, para o momento no qual ele esmoreceria e feneceria... o momento no qual ele se tornaria uma lembrança no vazio...
Ninguém se lembraria dele. Desta forma não haveria quem viesse a derramar lágrimas, não haveria quem pudesse sofrer o luto após sua partida.
Por que? Porque para tantas ou todas as pessoas, no fim de todas as coisas, ele simplesmente nunca havia existido.
Felipe R.R. Porto