quarta-feira, 26 de abril de 2023

Solidão - Capítulo 4 : Servo De Um Fantasma

Ainda sentado Arlequim alcança um pequeno compartimento ao lado de sua mala. Sua mão desaparece dentro deste, ele o remexe até encontrar o que procura. Segundos depois está com um cigarro nos lábios. Ele traga e suspira, a fumaça logo carregada pelo vento. Já se perguntara se aquilo, o habito de fumar, possuía para ele um sentido dúbio: o acalmava... e o matava. “Talvez”, pensou, sentindo alguma calma o tomar quando soltou a costumeira fumaça pela segunda vez.

Procurou ter a mente fria. Mantê-la calculista, ainda que ela relutasse. Se examinou e, como há pouco, constatara que estava perdido, servindo a duas vozes. Não sabia dizer se eram as vozes do passado e do presente, do passado e do futuro. Talvez não se tratasse de nenhuma das possibilidades. Talvez se tratasse de quem ele um dia fora e quem ele seria se fosse conivente com os padrões que o cercavam. Talvez. Ele sabia, porém, que haviam duas vozes lhe falando à consciência, lhe sussurrando aos ouvidos.

Talvez... tudo soava como um grande talvez. No entanto ele estava pronto. Ele ouvira alguém. Ou ninguém. Uma das vozes, no final, lhe será útil e verdadeira. Percebeu-se, neste instante, como sendo servo de um fantasma – de um espirito. Dependente dessa forma ou dessa deformidade. Alguém que, de qualquer forma, ele esperava que estivesse lá.

Havia a dor, mas ele buscava sobrepujá-la, estar acima desta, não permitindo que lhe ditasse as direções, não lhe ditasse também suas emoções. Já sofrera em demasia por isso.

Porém, ao mesmo tempo, para chegar a algum lugar – a algum lugar diferente – ele deveria correr o risco. Sem riscos, era bem sabido, não se chega a lugar algum. Não obstante, manter-se estagnado também se trata de um risco.

Mesmo, então, para batalhas, lutas que exigissem muito dele, ele estaria pronto para elas.

“Saque sua faca”, uma das vozes, no entanto, pareceu lhe dizer de forma desafiadora. “Fira sua alma e esteja preparado para ouvir seus gritos, beber do sangue a verter . Por fim, aproveite o momento!”

No entanto, ainda que essa decisão lhe tivesse acometido, seus olhos o obrigaram a notar algo: ele estava sozinho. Completamente sozinho. Estes mesmos olhos pareceram feridos por isso. A persistência que foi a bandagem que ele utilizou sobre estes olhos a fim de que ele pudesse ao menos prosseguir.

Arlequim se lembrou de um de seus momentos no velho trailer que fora levado pelo circo e seria dado a outra pessoa. Lembrou-se de uma vez em que, antes de maquiar-se, fitou o espelho. É óbvio que ele vê a si mesmo neste. Entretanto, fora doloroso.

“Você não passa de uma prostituta para essa vida, não é?” Não demorou para que aquilo que lhe doesse. Ele se lembrava de ter varrido toda a maquiagem e apetrechos ligadas a essa para o chão – o mesmo chão no qual ele caiu ajoelhado e lágrimas lhe desciam pelo rosto destruindo o trabalho, ainda que pouco, que ele havia feito.

Ainda que vagarosamente, ele começava a entender o que acontecia. O que a vida era.

Ele recordou de ter se levantado. Fitara o espelho outra vez. Fitara a si mesmo outra vez. Era ele e ninguém saberia disso mais do que ele. Ainda que estivesse vestido com suas roupas para o espetáculo da noite que se avizinhava ele era capaz de se enxergar perfeitamente. Nu. Suas vergonhas, suas falhas, seus medos e dores, assim como suas virtudes. Estas últimas, para ele, eram quase questionáveis. Se apenas ele via sua honestidade, sua generosidade e sua fraternidade como virtudes, como saber se realmente o eram? Como ele definiria isso? Há um padrão? Algo que mostre a direção...?

Ele se desvencilhara desses pensamentos. Não precisava deles agora. Intentava se focar naquela noite e nela apenas...

... naquela noite onde ele revidara as vozes. 

— Me mostre sua carne — ele havia dito para a figura no espelho. Era ele, mas também não era. Era ele, mas também eram aquelas vozes... o estranho fantasma ao qual ele inconscientemente, ou às vezes conscientemente, servia. — Corte-a. Quanto a mim? Sim, violente essa alma, beba do néctar que ela verter e a fertilize. No entanto, saiba de algo: não posso me livrar de você... mas você também não pode se livrar de mim! — Arlequim baixou os olhos para as próprias mãos. Eram realmente dele? Voltou os olhos para o espelho e o olhar que recebia, que lançava, era firme. — Como você grita em minha mente eu gritarei dentro da sua. Vou estraçalhar esse seu maldito crânio de dentro para fora. Sua dor, seu ódio... eu vou senti-los. Suas feridas... eu as abrirei e farei com que sangrem novamente!

Eram promessas! Ou não eram? A quem? A si ou àquele que pensava não ser ele, ou quem desejava que não fosse ele...?

Ele continuou fitando o espelho. Fitando as formas da pessoa que lá enxergava. Era ele, e sentia que também não o era. Apesar das vozes existirem, elas eram apenas ele. Apenas ele, pois estava sozinho. Completamente sozinho. A não ser por si mesmo. Pois podia dizer ao reflexo que se fosse, que o deixasse em paz, mas isto não aconteceria. Qualquer pedido receberia um não, ainda que o tempo tivesse passado e o próprio Arlequim não tivesse cumprido com as ameaças que fizera.

A única verdade, até então, é que fora ele seu maior enganador. Fora ele próprio o Judas que o traíra. Ele se punira e acabou sangrando pelas escolhas que fez contra si mesmo. Contra si mesmo. No entanto, dentre as maiores verdades já ditas neste mundo uma que merece ser sempre lembrada é que cada um é o pior inimigo de si mesmo. No fim, talvez, todos queiram apenas se punir pelo sofrimento que infligiram a si próprios.

Seria um massacre sangrento e hediondo se as coisas fossem simples assim. Não são, todavia. Embora muitos queiram. Embora o próprio Arlequim quisesse isso em momentos.

Ali, mesmo sozinho, como naquela lembrança ele se levantou. O cigarro, qual ele mal fumara, acabara se consumindo e as cinzas precisavam apenas do costumeiro “peteleco” para caírem. Precisava continuar. 

Logo nevaria.

Felipe R.R. Porto

terça-feira, 18 de abril de 2023

Solidão - Capítulo 3 : Solidão

O sol havia brilhado aquela manhã, mas não fora por muito tempo. No dia anterior uma tempestade ameaçara castigar as redondezas. Somente ameaçara, pois a noite veio, adentrou-se a madrugada e rompeu a alvorada sem que gota alguma tocasse os trailers, barracas, tendas ou jaulas do local onde o circo estivera nas últimas semanas. O céu, mais do que no dia anterior, trazia em suas nuvens uma tonalidade chumbo. Frias nuvens. Obviamente também frio era o vento que soprava.

Talvez realmente chovesse naquele dia.

Ao longe, mais a Leste, uma grande caravana se afastava. Ali, onde estiveram todas as armações e estruturas, lonas e demais quinquilharias do circo, haviam permanecido apenas os sinais de que este um dia estivera ali: duas estacas, Arlequim notara, foram esquecidas ainda fincadas solitariamente no solo e junto a estas um considerável retalho da lona de uma das tendas, onde grandes estrelas douradas foram ilustradas contra o azul escuro - talvez, às pressas, creram ter removido todas as mencionadas estacas, mas viram o erro ao puxarem a lona e esta se partir. Era uma possibilidade.

Uma pandeirola estava sobre o gramado - alguém certamente sentiria falta desta. Ao redor via-se grandes porções, geralmente circulares, da grama e suas minúsculas ramas ainda assentadas, inclinadas, tendo algumas adquirido uma coloração menos viva. Eram estas últimas, certamente, as maiores evidências de que um circo estivera por ali. Sobre elas estiveram estruturas de tendas ou arquibancadas, jaulas, caixas e caixotes, carrosséis, trailers e tantos outros objetos e estruturas. Arlequim estava em uma de forma circular, onde já se apresentara a grupos menores de espectadores em situações e números mais intimistas devido à proximidade com que o assistiram.

Aquilo tudo havia passado. Seriam apenas marcas em sua memória, assim como aquelas sobre o gramado. No entanto, a grama, em um ano ou dois, viria a “se esquecer” do circo e de tudo aquilo que este trouxera consigo.

Além de duas estacas, um retalho de lona, uma pandeirola e marcas sobre o gramado, Arlequim também ficava para trás. Havia escolhido assim. Havia escolhido, mas seria mentira dizer que não era estranho, mesmo levemente angustiante, ver a caravana se afastar, indo para um lugar para o qual ele não iria.

Aquele era o fim.

— Eu escrevo minha história — ele disse para si.

Havia algo de aterrador no “escrever a própria história”, havia a responsabilidade do “escritor”. Apenas teria de saber lidar com as consequências de sua “corajosa escrita”. Ninguém era capaz de entendê-lo melhor que ele mesmo, então acreditava ter feito a escolha certa no momento oportuno.

Acreditava mesmo? Ele suspirou diante da questão levantada pelas vozes que ainda ouvia, nada mais do que ecos da saudade precoce, ou da saudade de como as coisas já haviam sido mais simples.

A caravana, ele então vê, desaparece no horizonte. A solidão que paira é esmagadora, desoladora. Ela, diferente de outras vezes, lhe surge agressiva. Ele sente que ela o esbofeteia a face. Ele, no entanto, não foge dela. Já eram conhecidos, amigos, há tempo demais. Bons amigos discutem, se ferem, mas... nunca abandonam um ao outro. Ela parecia incapaz de abandoná-lo.

Ele, se esforçando, se levanta. Tinha de ir.

Uma memória lhe toma a mente, mas ele reluta em deixar que ela tome plena forma. Ela, porém, esta lá. Novamente ele se vê confuso, como se tivesse sido estilhaçado, feito em milhares de pequenos pedaços. Novamente a insegurança o toma e o abate. É como se cada um dos pequenos pedaços decidisse qual o caminho deveria seguir. Porém, por razões diferentes, eles tomam direções diferentes. Ir-se-iam se realmente pudessem. Ir-se-iam... como outros já se foram. “Eu não segurei suas mãos firme o bastante”, ele apenas pensa.

Ele, sucumbindo, senta-se outra vez. Sozinho. Sozinho ele viveu seus últimos anos; naqueles antes deste ele eram jovem demais para se importar com a solidão. Como crianças, em dados momentos, o ser humano soa tão fácil de agradar. Entretanto, isso, com o tempo, parece passar – a não ser que as prioridades sejam outras, que as questões, objetivos e sonhos sejam outros. Sozinho ele buscou seus sonhos, quais descobriu serem falsos. Ele procurou pela glória do amor, mas no fim encontrou apenas solidão.

Lembrou-se do estranho sonho que tivera na última noite. O momento em que ele retornava para seu assento e o encontrava já ocupado. Talvez, ele então pensou, que estivesse procurando sonhos que, na verdade, não pertenciam a ele. “Ou sonhos que não caberiam a mim sonhar”, concluiu ele sentindo-se outra vez imerso, sob o peso da ridiculamente esmagadora solidão. 

Felipe R.R. Porto